No dia da cor preta
Os MortosOs mortos mais do que os vivos, estão vivos.Surgem, fortes, intensos, aparecem,depurados e cheios de motivos.Visitam-nos e acham que merecemTodo o vigor da nossa atenção.A morte deu-lhes, pensam, nova vida:vê-se neles uma concentraçãode virtudes - de vida reflectida.Os mortos ensinam-nos a viver:dão um valor novo ao que nos rodeia,dão ao quotidiano acontecerum brilho vivo que nos incendeia.Os mortos acendem, em nós, a chamade uma nova vida. Julgo que pedemque olhemos fundo a luz que se derrama.Exigem. Clamam. Os mortos não cedem.Eugénio Lisboa
"O tempo adensara-se. A aproximação do fim provocava-lhe alguma soturnidade, o vislumbre de estados de alma que nunca experimentara. Tinha-lhes um total desconhecimento. Nunca os sentira. Era avesso a qualquer estado de alma. Apenas cuidava das palavras. Afiná-las era restituir-lhes a alma. A alma que lhes dava cor e sentido.
Conviver com a finitude nunca o atemorizara. Sabia-lhe o ventre. Quase que a sua própria gestação fora o prelúdio de um processo bifrontal. Nascera com a certeza de morrer, como um acto que se realiza a dois tempos .
Não sendo uma certeza imposta é uma verdade intestina e intemporal. Contudo uma verdade nem sempre assimilada. Um acto de gnose que nem todos exploram. Entre a resistência e a resiliência , vai acumulando pó em muitas mentes que pretendem esquecer o mesmo pó em que se transformarão.
Ligar a cor preta ao acabado , ao terminado, ao fim passa por algumas situações de dolorosa rejeição. Ninguém quer o preto com esse peso simbólico, com essa radicalidade semântica. Num tempo francês da primeira metade do século XIX, o preto era o irmão do vermelho – a cor da sotaina eclesiástica ou o fascínio rouge da farda militar. Preto como negrume de alma, o ódio que replica da cor do sangue, a cor do amor, da paixão que Stendhal imortalizou. O amor e o ódio. (Rouge ou noir , une partie de vie ou de mort). Rouge comme le sang, noir comme l’hypocrisie. Julien, o herói de “Le rouge et le noir”, representa-o em excelência. Stendhal a fechar o cerco ao negrume da cor. O Homem gerador de extremos , o homo sensiblis que se atraiçoa a si mesmo.
Mas no preto insurge a silhueta da morte. Veste –se de negro para muitos. Um negrume que não se esquece. Que dilacera a alma. Quando se assiste a uma morte, além de uma dor indescritível, guarda-se um episódio marcante para sempre.
Tolstoi criou um denso e agónico Ivan Ilich , enquanto personagem de uma obra de puro requinte literário. No leito da morte , Ivan não encontra alívio para as dores funestas que vão aumentando o seu martírio. Numa prolongada agonia, de estertor em estertor , esvai-se num crescendo doloroso, interminável durante três longos dias. Uma orquestra de gritos, de urros lancinantes até que tudo se transforma num suspiro derradeiro, quando a morte desce para o pacificar. O suspiro da finitude, da serenidade, da aceitação. A consciência do nada sobre o nada. A sabedoria do último instante que só emerge e se desenha na poeira do adeus. Morrer é longo.
O preto e a morte. Há outras mortes. Nem sempre vestem preto. Acontecem numa cor dorida que soma todas as cores e cor nenhuma. É a cor da inevitabilidade. A cor da impotência. Aquela que guarda dentro de si, escondida, no fundo onde o olhar se perde e os braços não alcançam. Alguém que amou. Viu-a morrer. Ali, sem o socorro que lhe exigia o coração. Morria com ela sem entender a certeza que tanto apregoava - somos finitude desde que nascemos. Soava-lhe como uma falácia , a maior naquele momento. Quando a morte entrou naquele corpo, soltou-se um som cavo, vindo do mais fundo daquele ser amado. Soube que acabara. Era o fim. Já não pertencia àquele corpo. Saíra. Partira. E o corpo ali estava inerte. Sereno sem vida. Nesse momento, o coração quase explodira. Sucumbia. A angústia matava-o também. Desejara ir . Que a perda era maior do que a vida.
A morte é o fim que nos espera e que nos surpreende. Porém, tudo dói quando ela colhe quem amamos.
Na literatura universal, há um enorme e rico filão de grandes amores que arrebata e rouba lágrimas, quando a força das palavras retrata a morte que une ou separa. Desde Sófocles a Racine , de Luís de Camões a Shakespeare, de Stendhal a Tolstoi, de Dostoievski a Charlotte Brontë, de Camilo Castelo Branco a Turguenev, de Petrarca a Pablo Neruda, de Goethe a Jane Austen, de Gabriel García Márquez a Julio Cortázar, de Eça de Queirós a Erico Verissimo. Uma fascinante galeria de grandiosidade dramática que soube vestir sumptuosamente as palavras quer para a vida , quer para a morte. Os mestres da palavra, qual plêiade universal da medida exacta da palavra.
Em O caos e a noite, o notável escritor Henry de Montherlant produziu a obra prima à volta da morte. Uma morte patética, mas grandiosa na efabulação. Um registo soberbo de como a morte pode ser inconscientemente procurada pela loucura, pela alienação da realidade. Um exercício inteligente na exploração da mente humana, traduzido em palavras com uma singular e magistral destreza. Um discurso claro, rico e exuberante que causa profundo prazer literário.
Por
onde andaria todo esse eloquente manancial de palavras. Algumas revira por
entre aquelas que fora afinando. Outras estavam adormecidas, emparedadas sem
que alguém as soubesse manejar. O joio tomara conta das searas.Agora era o tempo final . O tempo que não se
anuncia, que não se poupa, que não se procura.
Mas que chega. Firme e certeiro. O
tempo que dá tempo ao Homem, para descobrir
que é tudo e nada num só corpo.
Igual a todos os outros. E, apenas,
ficará dele , a marca
que souber deixar em quem lhe
sobreviver. Será essa marca que definirá
a sua passagem. E aqueles, que por ela forem tocados, lembrá-lo-ão. E, se fizer
acender a chama de uma nova vida, perdurará na lembrança dos tempos até
que a era crepuscular se vista de preto.
A
noite chegara. Era agora o seu não-tempo. Partiria.
Morreu! - disse alguém que se debruçava sobre ele . Ele ouviu estas
palavras e deixou que a sua alma
as repetisse em leve
variação. «Terminou a morte – disse . – A morte não existe. » Fez uma inspiração, ficou a
meio, inteiriçou-se e adormeceu na
morte.1
Em
verdade, naquela noite, o Afinador de Palavras vestira-se do mais intenso e espantoso preto."
Maria José Vieira de Sousa, in O Afinador de palavras, 2016, pp.16-18
1 - Leon Tolstoi, in “ A Morte de Ivan Ilich”, Editorial Verbo, p 73
Nossa cultura religiosa ocidental nos deixou perdidos diante da morte, assim como nossa cultura filosófica materialista nos fechou a porta da imortalidade, ante a “lógica” niilista da finitude. E, contudo, a primeira sensação dos que “morrem” é a surpresa diante da vida.
ResponderEliminarMorrer não é morrer. Morrer é mudar-se, afirmou Victor Hugo, por entender que há duas realidades de uma mesma vida. Na sua poética metafísica, Fernando Pessoa interpretou, espiritualmente, o fenômeno físico da morte ao dizer que: “Morrer é não ser visto” e Guimarães Rosa intuiu a glória da imortalidade ao expressar que “A gente não morre. Fica encantado”.
A morte é a curva da estrada,
ResponderEliminarA morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.
A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.
23-5-1932
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (8ªed. 1970).pg - 144.