Levam ao Sinédrio o humilde nazareno
para que se julgue o amor e a inocência
e diante da judaica prepotência
o Mestre se mantém doce e sereno.
Por ser blasfemador é réu de morte
diz Caifás com desprezo ao acusado
e depois de cuspido e maltratado
aos romanos entregam a sua sorte.
No pátio do palácio a massa se aglutina
e um prenúncio sinistro percorre a multidão
traído e abandonado à própria provação
aguarda o prisioneiro a sua sina.
– É um visionário, um sonhador somente
– e me comove sua mansidão, sua pobreza...
diz Pilatos..., convicto da certeza
de estar frente a um homem inocente.
Diante da injustiça e do impasse
transfere a Antipas a sentença
mas o tetrarca devolve-lhe a presença
com os espinhos ensanguentando a face.
Coberto com o manto da ironia
e como cetro uma cana retorcida
nessa imagem de realeza escarnecida
trazem novamente o Rabi à pretoria.
Tenta Pilatos um último artifício
para acalmar a plebe alucinada
e espera que a espádua açoitada
salve o Galileu do sacrifício.
Rasga-lhe a carne o látego cruel
e nem um murmúrio de dor ante o flagelo
envilecido e ultrajado, invencível e belo
cumpre a Trágica Figura o seu papel.
Mas ainda assim a turba em desatino
exige que a condenação seja mantida
e Pilatos propõe à massa ensandecida
que delibere sobre o seu destino.
Diante do pretório e amotinado
o povo absolve Barrabás
e movido pelos asseclas de Caifás
exige o Galileu crucificado.
Ante a sentença e os gritos do estrupício
e entre a verdade e o interesse dos seus atos
lava as suas mãos Pôncio Pilatos
e entrega o Cordeiro ao sacrifício.
Na mais ingrata e suprema solidão
maltrapilho, descalço e abatido
para o meio da escória é conduzido
sob o escárnio cruel da multidão.
Passos cambaleantes, dor, delírio
toda a ignomínia no símbolo da cruz
o madeiro infame nos ombros de Jesus
e o lancinante caminho do martírio.
Ergue-se o holocausto ao amor crucificado
na dor que esmaga, na sede insaciável
no estóico silêncio, no deboche intolerável
no lento suplício de um homem sem pecado.
E na agonia do Calvário, rumo à glória
roga a Deus perdão para os algozes
por tanto amor recebe os golpes mais atrozes
e o julgamento mais iníquo da história.
Curitiba, 26.02.04
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, 2007, pp.94,95,96
(*) “Eis o homem” - Palavras de Pilatos ao apresentar Jesus aos judeus
Prece de
gratidão
Eu te agradeço, Senhor,
ser filho do Teu amor
e herdeiro do Universo.
Ser cantor dessa beleza,
ter um lugar nessa mesa,
pelo sabor do meu verso.
Senhor, muito obrigado,
pelos pais bons e honrados
e pelas lições da pobreza.
Pelo café com farinha,
por tudo que eu não tinha
e que fez minha riqueza
Pelo meu corpo
perfeito,
pela poesia em meu peito
e os anos da minha idade.
Por todo dever cumprido,
pelo amparo recebido
e o céu da imortalidade.
Eu Te agradeço também
pela semente do bem
plantada no meu pomar.
Pela doçura desse fruto
não ter me tornado um bruto
e ter aprendido a amar.
Pela água da
minha fonte,
pela linha do horizonte
e um sonho de marinheiro.
Pelo meu mar de criança
e o meu barco de esperança
percorrendo o mundo inteiro.
Pelo pão, pelo abrigo,
pelo abraço do amigo,
por Teu carinho invisível.
Agradeço-Te com veemência
esta paz na consciência
e a minha fé invencível.
Pela luz que me
ilumina
desde a antiga Palestina
na alegria e na dor.
Por quem sou, pelo que sei,
por Moisés trazendo a Lei,
por Jesus trazendo o amor.
Senhor, eu Te agradeço
pela dor e o tropeço
quando ensinam uma lição.
Ninguém paga sem dever
e a Lei obriga a colher
o efeito da nossa ação.
Pela sapiência
contida
no pergaminho da vida,
na magia e na razão.
Agradeço-Te a minha parte,
pela ciência, pela arte
e pela Grécia de Platão.
Por Cabral no rumo certo,
pelo Brasil descoberto,
pela pátria e o cidadão.
Pelo herói da Inconfidência,
o Grito da Independência
e a bênção da Abolição.
Pelas lições da
História,
pelo povo e a sua glória
na busca da liberdade.
E pela Humanidade inteira,
quando erguer sua bandeira
pela paz e a verdade.
Grato sou por ter um sonho,
sonhar com um mundo risonho
numa paz contagiante.
Ver este Brasil fecundo,
como o coração do mundo,
em um porvir deslumbrante
Agradeço o bom
combate,
e ter encarado esse embate,
com o coração despojado.
Com Tua luz nos meus passos,
a fraternidade em meus braços
e o meu sonho preservado.
Contigo, Senhor, sou forte,
tenho um fanal, tenho um norte:
amor, sensibilidade.
Eu moro na melodia,
na música, na poesia
e no farol da verdade.
Muito obrigado, Senhor
pelo trabalho e o suor,
pelo que dei e recebi.
Quando chegar meu momento,
se eu tiver merecimento,
me leva pra junto de Ti.
Curitiba, Dezembro de
2002
Manoel de Andrade, in As palavras no Espelho, Editora Escrituras, São Paulo, Brasil, 2018, pp. 255-258
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