Diários e Confissões
por
Eugénio Lisboa
“Os
homens (e as mulheres) sempre gostaram de falar de si e das suas façanhas. A
confissão, dizia não sei quem, é uma tentação irresistível. Vem isto, repito,
de muito longe. Júlio César, por exemplo, não deixou por mãos alheias o relato
das suas campanhas na Gália: escreveu o seu próprio panegírico no famoso De Bello Gallico, para tormento dos
alunos de latim dos liceus do meu tempo. Rousseau deliciou-se a falar de si e
das suas misérias, nas sumarentas Confissões
que nos legou. O mesmo fez Santo Agostinho e tantos outros depois dele.
Magníficos diários não faltam, por exemplo, na grande literatura francesa:
Delacroix, os Goncourt, André Gide, Jules Renard, Julien Green, por exemplo. O
Diário de Gide é suavemente indiscreto e o de Julien Green foi-o também, até
ter saído, há muito pouco tempo, a sua versão integral, isto é, não expurgada,
na qual podemos ver o escritor a deliciar-se na descrição minuciosamente
indiscreta e muito crua das suas orgias sexuais: não resistiu à tentação de
contar tudo…
Falarmos
de nós próprios, com maior ou menor indiscrição, é, repito, uma enorme
tentação. Oscar Wilde era muito dado a isso. Conta-se que, estando ele, uma
vez, num restaurante, em Londres, lhe apareceu um jovem admirador, que queria
conhecê-lo pessoalmente. Wilde aproveitou logo a ocasião para falar de si com
abundância e fê-lo durante uma boa meia hora. Por fim, deteve-se e, voltando-se
para o jovem, disse-lhe mais ou menos isto (cito de memória): “Basta. Estive
muito tempo a falar de mim. Basta. Agora é a sua vez de falar de mim.” O autor
de O Retrato de Dorian Gray estava
longe de ser um caso isolado, no seu tempo e no seu país. Tinha um bom rival,
em egotismo e em espírito acerado, no pintor James Whistler. Quando, em certa
altura, a célebre revista Punch
publicou um elogio ditirâmbico dirigido à actriz Sarah Bernardt, atribuindo a
autoria do texto a Oscar Wilde, este reagiu, enviando um telegrama a Whistler,
nestes termos: “O Punch é demasiado
ridículo. Quando eu e tu estamos juntos, nunca falamos de nada a não ser de nós
próprios.” Whistler não perdeu tempo a responder-lhe: “Não, não, Oscar, estás a
esquecer-te. Quando tu e eu estamos juntos, nunca falamos de nada a não ser de
mim.” Wilde encerrou a conversa com um terceiro telegrama: “É verdade, Jimmy,
que nós estávamos a falar de ti, mas eu estava a pensar em mim.”
O
pendor confessional é, às vezes, tão forte, que o autor faz entrega de si, às
mãos cheias: Gide, para além de um extenso
diário, ainda nos deixou uma substanciosa autobiografia intitulada Si le grain ne meurt. Julien Green
também, além de um muito volumoso diário, igualmente nos deixou belíssimas
páginas de memórias. E o nosso Miguel Torga somou aos dezasseis volumes do seu
saboroso diário uma lomga autobiografia disfarçada, em cinco volumes: A Criação do Mundo. Sem falar no que, de
confissão, pôs na sua poesia. Como se vê, o autor de Bichos, embora discreto, era obstinado a falar de si e da sua
circunstância. E estava tão seguro de si
e do seu estatuto, que se não deixava facilmente abater, como o demonstra a
seguinte anedota verdadeira. Estava o escritor a gozar as suas habituais
férias, no Gerês, quando lhe apareceu um colega dos tempos da universidade, em
Coimbra. O antigo companheiro de estudos fez-lhe uma grande festa: havia que
tempos que não se viam e mais isto e mais aquilo, até que o inevitável aconteceu:
tirando do bolso um manuscrito, explicou ao autor de Novos Contos da Montanha, que também ele tinha escrito uns Poemas
Ibéricos. E, já agora, se o amigo os quisesse ler… Torga, sem uma palavra,
meteu os papéis no bolso. E, poucos dias depois, devolveu-lhos, sem dizer uma
palavra. O colega, afrontado, reagiu: que o Rocha era de força, que podia, ao
menos, dizer se gostara ou não dos seus poemas e que até, por acaso, a sua
mulher preferia os seus Poemas Ibéricos aos do Torga. Este respondeu-lhe curto
e final: “Estime-a!”.»
20.10.2019
Eugénio
Lisboa , em Crónica
publicada na rubrica Ipsissima Verba, da Revista LER.
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