A fealdade é uma forma de violência.Francine Noel
“Sempre me intrigou, quando a minha mãe me queria
repreender, por qualquer mau comportamento meu, que fosse sistematicamente
invocada uma razão de cariz estético: “O menino não faça isso porque é feio!”
“O menino não coma assim porque não é bonito”. Não porque magoa o outro, ou
porque suja a toalha da mesa, ou porque torna alguém infeliz. Não: pura e
simplesmente, não se faz porque é feio. O estético antes do ético ou do
moralista. Era talvez a melhor maneira de persuadir crianças ainda não maduras
para outros conceitos de mais difícil absorção. Um argumento de fácil
aceitação, porque ninguém quer ser feio. André Gide viria até a produzir um dos
seus mais atrevidos aforismos, a este mesmo respeito, quando observou que a
ética era uma dependência da estética. As pessoas, de uma maneira geral, mais
se conseguem abster de um gesto suposto feio ou grosseiro do que eticamente
reprovável. Serem acusadas de falta de sentido estético incomoda-as mais do que
de insensibilidade ética. Oscar Wilde levava esta inclinação ao extremo, ao
dizer que não há livros morais e livros imorais, há só livros bem escritos ou
mal escritos, indo até dizer que ”nenhum artista tem simpatias éticas” e que
“uma simpatia ética, num artista, é um imperdoável maneirismo de estilo.” Há,
nestas formulações wildeanas um óbvio e deliberado exagero, mas que
indubitavelmente visa dar preponderância ao estético sobre o ético. A fealdade
na natureza tem muito de repulsivo e tem sido fonte de inúmeras invectivas de
grande ferocidade. Shakespeare, por exemplo, não hesitava em rogar, por via de
um dos seus personagens: “Ajudai-nos a escorraçar a fealdade do mundo.” E um
provérbio inglês sugere que “a beleza é à flor da pele, mas a fealdade vai até
aos ossos.” Certos vícios de carácter – e dos mais odiosos – como a inveja, são
tidos como particularmente repulsivos, por razões mais estéticas do que éticas:
diz-se de alguém que ficou “verde de inveja”, sublinhando-se aqui a “fealdade”
de uma pele humana verde; ou “roído de inveja”, uma imagem física de um
feiíssimo corpo “roído” pelo verme da inveja. Nisto tudo, o ético ou não entra
ou entra em segundo lugar. O recurso à estética da fealdade, para iluminar
melhor o que têm de repulsivo certos vícios (a inveja, o ciúme, o
ressentimento), mostra-nos como o juízo estético pode ser muito mais eficaz, como
arma de luta contra eles, do que o juízo ético. Porque o juízo estético vê-se
melhor, impressiona mais, agride com mais força. Dizer que uma pessoa é feia
por dentro e por fora ou que é bonita por dentro e por fora diz-nos mais do que
o desfiar abstracto, não visível, das maiores virtudes. O gosto pode servir
melhor o valor de certas virtudes, do que o exemplo dessas virtudes. Uma
virtude bela é mais apetecida do que uma simples virtude.”
Eugénio Lisboa, 13.11.2023
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