Quem
tem boca vai a Roma ou vaia Roma?
por
Marco Neves
“Vamos
lá ver qual é a versão mais antiga.
Desde
criança que me lembro de ouvir e ler a expressão «Quem tem boca vai a Roma».
Ora, de vez em quando, encontro quem tente corrigi-la. A versão certa seria
«Quem tem boca vaia Roma».
Vamos
testar a ideia.
Imaginemos
que «Quem tem boca vaia Roma» é, de facto, a versão mais antiga e «vai a Roma»
é uma deturpação. Se for o caso, ao consultarmos os registos escritos da
língua, vamos encontrar a versão «vaia Roma» nos registos mais antigos e a
versão «vai a Roma» nos registos mais recentes. Mais: tendo em conta que esta
expressão existe em vários idiomas, e sabendo que a deturpação só funciona na
nossa língua («vaia» e «vai a» são semelhantes apenas em português),
encontraremos certamente a versão «vaia Roma» nas outras línguas.
Pois
bem, acontece precisamente o contrário: os registos escritos mais antigos são
da versão «vai a Roma». Se formos ao conhecido Corpus do português (uma recolha
dos registos escritos na nossa língua que encontra aqui), na sua
secção de corpus histórico, encontramos várias ocorrências de
«Quem tem boca vai a Roma» — em Machado de Assis, só para dar um exemplo. E a
outra versão? Não aparece uma única vez. Só conseguimos dar com ela se
pesquisarmos um corpus de textos mais recentes, retirados da
Internet ou de jornais das últimas décadas.
Se
olharmos para as outras línguas, encontramos a mesma expressão, pelo menos, em
castelhano («Preguntando se llega a Roma») e em francês («Qui langue a, à Rome
va»), todas semelhantes a «Quem tem boca vai a Roma». Também encontramos
expressões com a mesma estrutura noutras línguas mais distantes: «Quem tem
língua vai a Kiev», por exemplo, parece ser uma expressão do russo e do
ucraniano.
Podemos,
depois, acrescentar dados: a versão «Quem tem boca vai a Roma» é muito mais
frequente, mesmo nos dias de hoje. O significado com que é usada faz sentido
(já a versão «vaia Roma» só faz sentido noutros contextos). Os dicionários (e
outras obras) registam «Quem tem boca vai a Roma».
Tudo
somado, não há um único indício de que a versão «vaia Roma» seja a mais antiga.
E, no entanto, ela passou a existir nos últimos anos. Os falantes gostam de
inventar — e é assim que a língua se faz. No fundo, são duas expressões
parecidas. «Quem tem boca vai a Roma» é a mais antiga e, de longe, a mais
usada, com o significado «quem pergunta consegue chegar aonde quer». «Quem tem
boca vaia Roma» é muito mais recente, muito mais rara e tem como significado
«todos devemos reclamar perante o poder». Confesso: tendo em conta que a nova
expressão é muito usada apenas como correção da mais antiga e não como
expressão genuína, não tenho grande simpatia por ela...
Agora,
o que é mesmo erro — objetivamente erro — é corrigir quem usa a versão «vai a
Roma». Estes corretores estão a tentar impor uma expressão que não é mais
antiga, não é mais correta e, ainda por cima, tem outro significado.
Por favor, deixem o velho ditado sossegado: «Quem tem boca vai a Roma»!”
Marco
Neves | Professor
e tradutor. Escreve sobre línguas na página Certas Palavras e
fala sobre livros na Pilha de Livros. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.
Artigo publicado em Sapo24, 22
Out. 2023
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