A Cidade e As Serras
por Eça de Queiroz
" Afortunado Jacinto, na verdade! Agora, entre campos que são teus e águas que te são sagradas, colhes enfim a sombra e a paz!
Li ainda outros versos . E, na fadiga das duas horas de égua e calor desde Guiães, irreverentemente adormecia sobre o divino Bucolista - quando me despertou um berro amigo! Era o meu Príncipe. E muito decididamente , depois de me soltar do seu rijo abraço , o comparei a uma planta estiolada , emurchecida na escuridão , entre tapetes e sedas, que, levada para o vento e sol, profusamente regada , reverdece, desabrocha e honra a Natureza! Jacinto já não corcovava. Sobre a sua arrefecida palidez de supercivilizado, o ar montesino , ou vida mais verdadeira, espalhara um rubor trigueiro e quente de sangue renovado que o virilizava soberbamente. Dos olhos, que na Cidade andavam sempre tão crepusculares e desviados do Mundo, saltava agora um brilho de meio-dia, resoluto e largo, contente em se embeber na beleza das coisas. Até o bigode se lhe encrespara. E já não deslizava a mão desencantada sobre a face - mas batia com ela triunfalmente na coxa. Que sei? Era um Jacinto novíssimo. E quase me assustava , por eu ter de aprender e penetrar, neste novo Príncipe, os modos e as ideias novas.
- Caramba, Jacinto, mas então...?
Ele encolheu jovialmente os ombros realargados . E só me contar, trilhando soberanamente com os sapatos brancos e cobertos de pó o soalho remendado, que, ao acordar em Tormes, depois de se lavar numa dorna, e de enfiar a minha roupa branca, se sentira de repente como desanuviado , desenvencilhado! Almoçara uma pratada de ovos com chouriço, sublime. Passeara por toda aquela magnificência da serra com pensamentos ligeiros de liberdade e de paz. Mandara ao Porto comprar uma cama , uns cabides ...E ali estava...
(...)
De tarde , depois da calma, fomos vaguear pelos caminhos coleantes daquela quinta rica , que através de duas léguas , ondula por vale e monte. Não me encontrara mais com Jacinto desde o remoto dia de entremez em que ele tanto sofrera no sociável e policiado bosque de Montmorency. Ah, mas agora com que segurança e idílico amor ele se movia através dessa Natureza , de onde andara tantos anos desviado por teoria e por hábito. (...)
Agarrava o meu pobre braço, exigia que eu reparasse com reverência. Na Natureza nunca eu descobrira um contorno feio ou repetido! Nunca duas folhas de hera, que, na verdura ou recorte , se assemelhassem! Na Cidade, pelo contrário, cada casa repete servilmente a outra casa; todas as faces reproduzem a mesma indiferença ou a mesma inquietação; as ideias têm todas o mesmo valor, o mesmo cunho, a mesma forma, como as libras; e até o que há de mais pessoal e íntimo , a Ilusão é em todos idêntica, e todos a respiram, e todos se perdem nela como no mesmo nevoeiro... A mesmice - eis o horror das Cidades!"
Eça de Queiroz, in A Cidade e As Serras, Lello&Irmãos - Editores, Porto, pp.187,188,193,194,195
Sobre o livro:
"A
Cidade e as Serras foi
o último livro de Eça. Não teve tempo de dar o seu toque final com a sua
revisão sempre perfeita, porque morreu em 16 de Agosto de 1900. Da página 194 em
diante, as provas não passaram pela sua releitura exigente. Não deu a última
demão. O romance foi escrito na primeira pessoa. O narrador José Fernandes
conta a história do protagonista Jacinto de Tormes, que nasceu e foi criado em
Paris, mas era filho de fidalgos portugueses de Tormes.
O
meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em
terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.
No
primeiro parágrafo, o narrador descreve, em breves linhas, o amigo
protagonista. E o lugar onde vive:
No
Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes ondulando por colina e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos
desta velha família agrícola que já entulhava o grão e plantava cepa em tempos
de el-rei d. Dinis. A sua quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro,
cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, por cinco fartas léguas, todo o
torrão lhe pagava foro. E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Arga até ao
mar de Âncora. Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era
em Paris, nos Campos Elísios, nº 202. "
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