AMÉRICA, AMÉRICA!
por Eugénio Lisboa
Eu tremo pelo meu país quando penso que Deus é justo.
Thomas Jefferson
“O poeta
Heinrich Heine disse um dia esta coisa tremenda: “Quando, à noite, penso na
Alemanha, perco o sono.” Tinha razão e o que depois foi acontecendo na Europa
mostrou que o poeta era também um muito credível profeta. Thomas Jefferson, que
cito em epígrafe, parece também ter perdido o sono, ao pensar numa justiça
transcendente que porventura visitasse o seu país. Ele lá sabia. Jefferson foi,
como se sabe, um estadista americano, advogado, diplomata, arquitecto, filósofo
e veio a ser o terceiro Presidente dos EUA, sendo hoje considerado um dos dez
melhores, no cargo. Foi também o fundador da Universidade da Virgínia. Na sua
redacção da Declaração de Independência condenou o negócio da escravatura e, em
1807, promulgou uma lei proibindo a importação de escravos, apesar de ele
próprio ter sido proprietário de escravos e ter tido vários filhos de uma
escrava. Eis um dos sinais das profundas contradições que roem as entranhas
deste país poderoso e altamente criativo. O qual, seja dito, em abono da
verdade, é o primeiro, na sua arte do cinema e da literatura, a fazer uma
implacável crítica aos seus deslizes e mesmo aos seus crimes, dentro e fora de
fronteiras. Um só exemplo: Archibald Cox, advogado, Professor de Direito,
advogado geral do governo de Kennedy e, mais tarde, Procurador Especial, no
escândalo Watergate, não hesitou em fazer esta avaliação contundente do seu
próprio país: “Confesso que não consigo compreender como podemos intrigar,
mentir, fazer batota e cometer assassinatos no estrangeiro e permanecermos
humanos, respeitáveis, dignos de confiança e levados a sério, no nosso país.”
Outro exemplo é o do muito conhecido Robert Audrey, dramaturgo e ensaísta, no
campo das ciências sociais, que deixou dois clássicos – AFRICAN GENESIS e THE
TERRITORIAL IMPERATIVE – e fez esta avaliação dolorosa do comportamento
americano: “Na América, imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial, o antissemitismo
atingiu cumes nunca antes atingidos, apesar de todas as contribuições nazis
para a nossa consciência universal; e a literatura desse período dar-me-á
razão.” Não só a literatura, mas também o cinema, que deixou poderosos
testemunhos desse ódio milenar.
É desta
América, grande na literatura, no cinema, na ciência e na tecnologia, nas artes
plásticas, na astronáutica, na música, que nos vêm também, para esta Europa,
que logo as absorve, gulosamente, as maiores idiotices ligadas ao politicamente
correcto, autoproclamado defensor dos direitos e sensibilidades das minorias.
Aí, vale tudo. Os maiores desconchavos e atropelos passam a ser alvo do maior
carinho. A discriminação positiva, como solução barata e expedita de um
problema real que requer solução mais profunda e dispendiosa, a “purificação”
dos textos clássicos feita por leitores “sensíveis”, a introdução obrigatória,
nos thrillers, de comandantes de polícia negros a darem ordens firmes a brancos
obedientes, que são amigos do coração de uma raça que, aparentemente, nunca os
incomodou (qualquer dia, temos um Hamlet negro e filho de um governador negro
do Mississipi, amante de uma americana loira e irmã de um Laertes paquistanês)
– tudo isto é o pão que quotidianamente nos chega da América de Mark Twain, de
Henry James, de O. Henry, de Eugene O’Neill, de Faulkner, de Dorothy Parker e
Robert Benchley, de Tennessee Williams, de Hemingway, de Phillip Roth, que
devem estar a dar voltas no túmulo a pensarem no que esperam as suas obras,
entregues às mãos dos “purificadores” castrados. Vou só dar um exemplo muito
recente e termino. Um muito conhecido editor americano recusou recentemente
publicar um romance, alegando ser impossível fazê-lo pelo facto de o
protagonista ser branco e heterossexual. De facto, era uma verdadeira afronta
ao politicamente correcto. Já o grande Jorge de Sena, há cerca de cinquenta anos,
dizia que a melhor hipótese de um jovem sem grande mérito ter acesso a uma
universidade americana, aproveitando da discriminação positiva, era ser negro,
zarolho e lésbico. Pascal tinha razão: há que saber fazer um bom aproveitamento
das doenças, sendo aqui “doença” pura metáfora operatória para “desvantagem”
(não vão os leitores “sensíveis” crucificar-me, e eu não tenho vocação para
Cristo!)”
Eugénio Lisboa, em 05.09.2023
Sem comentários:
Enviar um comentário