XXXIV - Um navio para os meus sonhos
por Manoel de Andrade
Mar afora, mar
adentro
lá vai singrando um veleiro
quem dera ser passageiro
pra correr nas mãos do vento.
Mar adentro,
mar afora
como navega ligeiro
cruzando este golfo inteiro
nas cores vivas da aurora..
Onde vais
assim tão cedo
rumo à ilha do Arvoredo
levando meu coração...?
Vou
navegando contigo
meus olhos te seguem, amigo
rumo à ilha do Arvoredo
levando meu coração...?
Vou
navegando contigo
meus olhos te seguem, amigo
perdidos na imensidão. !
(...)“Mar,
imenso mar
planície total e palpitante
miragem e sedução
misteriosa superfície nos caminhos do destino
o mar de todas as proas
esse território dos meus sonhos.
Navegar,
não naveguei...
as águas do Titicaca foram minha gota de oceano no alto da Cordilheira
navegar
como quisera navegar, nunca naveguei...
rota costeira de Quayaquil à Callao,
minha única travessia
meu mar sem horizontes
minha comovida migalha de aventura.”2
Conheço
teu agitado marulho
tua voz de barítono
conheço tua zangada pronúncia
tuas lanças arrojadas pelos braços da tormenta
conheço tua suave dança
na onda calma e inumerável
na crista transformada em súbita canção de espumas
conheço-te na beleza da baía amanhecida
na hora melancólica do crepúsculo
e no teu dorso enluarado.
Me deste
a paisagem das águas litorâneas
e a espuma se estendendo sobre a areia
me mostraste a nudez e o encanto das praias solitárias
a preamar e a vazante
e o teu perfil de mastros e gaivotas
me deste a magia do horizonte
uma vela solta ao vento
e um barco de papel para os meus sonhos
mas nunca me mostraste
a extensão azul dos teus domínios
e nem um indício sequer dos teus enigmas.
Marinheiro
sem mar e sem destino
nunca pude navegar tuas distâncias.
Deste banquete
me deste apenas o paladar salgado dos meus versos
minha sílaba de sal
e a tua própria essência salpicada entre meus dedos
molécula elementar
unânime cristal
para que na minha dieta imprescindível
eu possa provar teu sabor todos os dias.4 ”
Manoel de Andrade, in Nos rastros da utopia, uma memória crítica da América Latina nos anos 70, Escrituras Editora, São Paulo, 2014. pp. .829-840
1- Manoel de
Andrade, Cantares, Escrituras
Editors, 2007, p. 47
2- Idem, pp.34,35
3- Klink, A, Cem
dias entre o céu e o mar, Rio de Janeiro, José Olympio,1991,p 51
4- Manoel de
Andrade, Cantares, Escrituras
Editors, 2007 ,pp.40, 41
Sobre o autor:por Manoel de Andrade
“Cheguei a Quayaquil no dia 21 de novembro (1970), sentindo a grande diferença
entre o frescor da serra e a temperatura de estufa do litoral. Cheguei
aborrecido por não ter podido me despedir de todos os melhores amigos. Alguns
ficaram boquiabertos com a insensatez dos fatos determinando minha súbita
partida. Não houve tempo para dar a entrevista já programada para aqueles dias
por um repórter do jornal “El Comercio”. Eu já era bem conhecido no meio
estudantil e entre a intelectualidade de Quito, e agora que se abriam os
caminhos para grandes apresentações da minha poesia, tinha que partir. Como foi
doída minha despedida de Rodrigo e Luigina, os amigos mais queridos que deixei
há quarenta anos em Quito.
De todos aqueles grandes amigos, somente a Manuel Perez eu
voltaria a rever. Reencontrei-o alguns meses depois em Santiago, onde chegou
refugiado depois do golpe militar que derrubou Velasco Ibarra, em fevereiro de
1972.
Em Quayaquil, procurei um hotel discreto e passei a pensar com mais tranquilidade
como sair do país. O meu destino era o sul, a caminho do Chile, mas não poderia
voltar pela fronteira peruana de Tumbes, por onde me haviam mandado embora há
um ano e meio. Certamente meu nome estava nos registros policiais da fronteira.
No dia seguinte, saí a andar pelo centro e lembrei-me do pintor León Ricaurte,
aquele amigo com um coração de ouro que tanto me ajudou quando cheguei meio
perdido em Quayaquil.
Mas ele continuava no México e já não me lembro porque motivo
não procurei sua esposa Sara. Lembro-me de que León dizia-me, quando do nosso
convívio no México, da esperança de que sua bolsa da UNESCO fosse prorrogada e
ampliada para outros estudos na área da cerâmica e da pintura mural. Pois eu
soubera, em Quito, que ela fora concedida até o ano seguinte.
(…)
Cheguei ao caís de Guayaquil quando atracava um navio branco chamado Rossini. Era um transatlântico italiano.
Não era tão grande como outros navios de passageiros italianos muito conhecidos
na época como o Giulio Cesare, o Augustus , o Verdi, o Cristoforo Colombo.
Que bela ideia me invadiu a alma: viajar para o sul de navio. Procurei me
informar e achei no centro da cidade a filial da agência Italian Line e fiquei
sabendo que dali a dois dias, ele partia com escala em Lima, no porto de Callao,
seguindo para Arica, Antofagasta e Valparaizo. Eu poderia fazer duas coisas
importantes: sair do Equador e realizar meu antigo sonho de viajar de navio. Mas,
e a entrada no Peru? E se me detivessem no porto de Callao? Eu poderia seguir
direto para um país socialista, desembarcando sem problemas no porto chileno de
Valparaíso, onde Allende estava no poder. Ainda assim, eu precisava passar por
Lima. Rever amigos e estabelecer contatos importantes que deixei de fazer quando
fui detido, preso e expulso do país, em setembro de 1970. Resolvi arriscar, por
acreditar que pela imigração de Callao, a fiscalização era diferente das
fronteiras terrestres, por estar voltada para turistas estrangeiros que vinham
conhecer Lima, Cusco e Machu Picchu. Comprei uma passagem de segunda classe e
entreguei minha sorte ao destino.
(…)
O navio partiu cedo, numa
ensolarada manhã de sábado, navegando placidamente pelo imenso caudal do rio
Guayas. Não conheço tantas baías e golfos do mundo, mas creio que a passagem
marítima pelo golfo de Guayaquil é uma das mais belas paisagens vistas de um
navio. Ilhas, casarios incrustados nas encostas, pequenos portos, trapiches e
improvisados embarcadouros, as correntes poderosas do Daule e do Babahoyo que
ali desaguam, chalupas à vela, longas dragas deslocando-se lentamente, canoas repletas
de banana, embarcações de todo tipo num trafegar incessante, enfim, todo o
encanto que nos oferece um cenário mediterrâneo. Viajamos toda a manhã pelo
interior do golfo e somente depois que se cruza a Ilha Puná , sua extensa abertura para o
Pacífico avança centenas de quilômetros até ao Cabo Branco, no Peru.
Ao sair do golfo, o navio foi deixando um rastro branco em sua longa curva, guinando
lentamente para o sul, em busca da sua rota. Finalmente, eu estava em pleno mar,
navegava pelo maior de todos os oceanos.
Minha cabine era pequena e me coube a parte de cima do beliche. Meu companheiro tinha feições indígenas e
contou-me que nascera em Guayaquil, mas que seus pais vieram da serra, fugindo
da servidão e da miséria e atraídos pelos bons salários para trabalhar nas
construções da cidade, que há décadas crescia a olhos vistos. O que bem me
lembro dele era vê-lo vomitando na pia, quando o navio começou a balançar ao
chegar em alto mar. Eu também me senti mal, mas ficava quase todo o tempo no
convés. Era minha primeira viagem oceânica de navio. Tudo poderia ter sido mais
romântico, como foram as duas travessias nas águas espelhadas do Titicaca, se o
mar, naquele primeiro dia, estivesse mais calmo. Eu tinha que misturar a emoção
com o enjoo.
Depois que saímos do golfo, navegávamos sempre com o litoral peruano a
nossa esquerda e à direita a imensidão e o horizonte, marcando a linha entre o
azul do céu e o verde das águas. A costa estava distante e ainda que
estivéssemos no verão avistava-se a terra de uma forma indistinta, apagada por
trás de uma fina névoa cinzenta. Meu companheiro de cabine disse que aquele
fenômeno era conhecido como camanchaca. Imagino que naquela primeira tarde navegássemos no litoral de Piura, no caminho
das cidades costeiras de Chinclayo e Trujillo, em cujas cercanias achavam-se as
ruínas monumentais de Huacas del Sol y
de la Luna
e da cidade pré-colombiana de Chan
Chan ( Sol Sol). Quando se fala em Peru , logo associamos o país com Cusco
e Machu Picchu, e poucos sabem das grandes
civilizações que floresceram na extensa costa centro-norte peruana. Ao cruzar a região, a História me contava que cerca de quatrocentos e quarenta anos antes,
os espanhóis chegavam navegando pela primeira vez por aquela mesma rota,
procedentes do Panamá e aportando em Cajamarca no ano de 1532, onde Pizarro
cometeu aquela literal barbaridade contra o imperador Atahualpa. Todavia, muito
antes do esplendor do Império Inca, podia-se contar quase seis mil anos da
presença do homem naquela região do Peru, como comprovam a Cultura Chavín e a
remota Cultura Sechín, descoberta em 1937, pelo arqueólogo peruano Julio César
Tello.
O Rossini navegava agora costeando o litoral que abrigou as grandes culturas Mochica e Chimú. A primeira
foi destruída pelas catástrofes com que o El
Niño castigava periodicamente a região e os chimús foram conquistados pelos
incas, quando estes cortaram as águas que abasteciam o seu Reino e massacraram,
em 1470, os habitantes de Chan Chan.
Não jantei naquela noite, pensando que poderia devolver tudo. Tomei mais
um comprimido para o enjoo e me deitei cedo, constrangido pelo mal estar. As páginas
de Walt Whitman me fizeram adormecer com seus versos.
No segundo dia de viagem,
madruguei no convés. A manhã foi surgindo pálida e fresca na quietude da
paisagem. O mar estava tranquilo e, depois do café, me debrucei na amurada da
popa a olhar o rastro esbranquiçado que o navio deixava na imensa extensão do
seu caminho. O sol surgira por trás dos Andes e banhava o mar com sua imensa
luz. Que belo dia! Navegávamos sob um céu de brigadeiro e sobre um mar de
almirante. À esquerda, a sempre mesma paisagem distante do litoral e, contudo,
apesar daquela visão monótona, era um encanto viajar a céu aberto sobre um mar
esverdeado e calmo. Não muito longe, entre o navio e a costa, um grande veleiro
se aproximava para cruzar conosco, seguindo para o norte. Quem sabe estivesse a
caminho do golfo! Suas velas bojadas empurravam o casco com rapidez e
elegância. Seus altos mastros, seu velame triangular, aquele perfil esbelto
levado a todo o pano pelo vento, esse destino palpitante que flutua, a poesia e
o encanto deslizando sobre as águas. Passei a navegar com ele e a imaginar as
longas travessias dos barcos à vela desde os tempos mais remotos. As rotas
mitológicas dos argonautas nas águas do mistério. As velas latinas que cruzaram
desde sempre o Mare Nostrum e levaram os genoveses até Bizâncio. Lembrei-me da
esquadra romana de Marcelo, sitiando Siracusa e as velas de seus navios
incendiadas pelos espelhos e as lentes de Arquimedes.
Mas para onde navegava agora aquele veleiro branco, subindo a costa
peruana? Não era somente eu que, no convés, tinha o olhar imantado em sua
beleza. Suas velas cheias mantinham-no levemente adernado para a direita.
Talvez seu destino fosse o porto de Guayaquil, disse-me alguém (ao lado).
Ou a distante Ilha de Santa Cruz, em Galápagos, acrescentou outro passageiro.
Enfim nos cruzamos, mas estava muito longe para que seus tripulantes
respondessem aos nossos acenos. Que belo presente me dera o mar naquele dia. Já
se distanciava deixando em meu olhar um gosto melancólico. Há sempre algo de
nós que parte e que fica, e eis porque os veleiros sempre navegam carregados de
saudade. Ah, as velas enfunadas sempre encheram os meus olhos e comoveram
minh’alma! Muitos anos depois, descrevi
um veleiro saindo pela baía catarinense de Zimbros, entre os primeiros clarões
de uma manhã de verão:
Veleirolá vai singrando um veleiro
quem dera ser passageiro
pra correr nas mãos do vento.
como navega ligeiro
cruzando este golfo inteiro
nas cores vivas da aurora..
rumo à ilha do Arvoredo
levando meu coração...?
meus olhos te seguem, amigo
rumo à ilha do Arvoredo
levando meu coração...?
meus olhos te seguem, amigo
perdidos na imensidão. !
Embora a travessia estivesse banhada pelo sol forte de novembro e nos
encontrássemos um pouco abaixo da linha equatorial, a temperatura era fresca e agradável. É que navegávamos sobre as
águas da Corrente de Humboldt que nasce na Antártida e avança para o norte do
Pacífico peruano, carregando suas baixas temperaturas. No convés, o local da
primeira classe era separado dos demais passageiros. Pedi e convenci um
tripulante a me deixar conhecer a primeira classe. Disse-lhe que era um
escritor e quem sabe um dia contasse aquela viagem em minhas memórias. Naquele
momento, tratava-se de um mero pretexto para ter acesso a locais interditados
aos “excluídos” da segunda e terceira classe. Muitos anos depois, mas muito
antes de iniciar estas memórias, no poema
Travessia, eu me lembraria das
únicas viagens de navio que fizera, até então, na minha vida:
planície total e palpitante
miragem e sedução
misteriosa superfície nos caminhos do destino
o mar de todas as proas
esse território dos meus sonhos.
as águas do Titicaca foram minha gota de oceano no alto da Cordilheira
rota costeira de Quayaquil à Callao,
minha única travessia
meu mar sem horizontes
minha comovida migalha de aventura.”2
Nunca vira tanto luxo num navio:
salão de estar, restaurante, salão de festas, biblioteca, capela, um grande
bar, etc., assim como era luxuosa a aparência das pessoas que encontrei.
Italianos e espanhóis na maioria. No bar, conversei com uma jovem colombiana
que havia embarcado em Buenaventura com destino a Valparaiso. Era estudante de
sociologia e viajava ao Chile com uma bolsa de estudos. Se naquele pequeno
navio tudo era deslumbrante, como seriam as dependências dos grandes
transatlânticos? Pensei eu. Fazia alguns
anos que um dos maiores navios de passageiros, o Queen Mary, abandonara os mares. Eu era ainda um adolescente e meu
interesse pelos navios nunca me fez esquecer as notícias da tragédia do mais
célebre cruzeiro italiano, o Andrea
Doria, que afundara em 1956,
abalroado pelo transatlântico Stockholm, nas costa de Nova Iorque. O destino
colocou o Rossini no meu caminho, um
navio pequeno, mas onde, para mim, tudo era encanto e novidade. Quando garoto, eu entrara muitas vezes nos navios que atracavam no porto de Itajaí. Era a
década de 1950, o cais era aberto e eu com alguns garotos subíamos nos
navios para nos atirar da proa, disputando, entre nós, a parte mais alta e o
mais belo mergulho. Mas nada havia de luxuoso ou interessante em suas
dependências. Eram tão somente grandes cargueiros. Na minha adolescência, fiz amizade com muitos
marinheiros que sempre voltavam à cidade. Nunca esqueci o nome de um deles: o
espanhol Ramón Urrutia Villar. Eu tinha cerca de dezessete anos - idade em que
o escritor Joseph Conrad começa sua vida de marinheiro - e Ramón uns vinte e
cinco. Sentados nos bancos da praça central de Itajaí, ele me fazia navegar
relatando-me “casos” e fatos ocorridos em suas viagens, falando-me de grandes
portos, de países distantes, de mulheres e de amores, das cidades nas quais mais gostava de aportar, de como eram belas as
costas do Mediterrâneo, me falava do porto e da cidade de Barcelona e das
saudades que tinha da sua Catalunha.
Na hora do almoço, tive que deixar aqueles ambientes e voltar para o meu
espaço, porque no luxuoso restaurante da primeira classe as mesas eram marcadas
com o número dos aposentos. Já na minha classe as mesas eram coletivas. Apesar
da elegância e o requinte das decorações que vi, toda aquela ostentação não me
dizia respeito e achei que meu lugar era mesmo na segunda classe.
(…)
Mas naquela viagem o mais importante para mim era o mar. Embora houvesse
nos meus passos uma grande aventura em curso: a ida e a volta ao longo de
dezesseis países da América, a real vivência do mar era uma experiência sonhada
desde a infância. Mas ainda assim aquela travessia não era o sonho que sonhei.
Não era como um passageiro que eu imaginara cruzar os mares, mas sim como um
tripulante, um simples marinheiro em um cargueiro qualquer, em cuja rota
constasse sempre um novo porto para chegar. Quem sabe aquele fosse o único
quinhão do meu sonho. Eu sabia que era muito pouco, que aquelas poucas milhas
não me permitiriam conhecer os segredos do mar, não me revelariam seus
mistérios, sua zanga, seus caprichos, seus momentos de sedução. Que não me
seria dado conhecer aquele “o mar sem fim”, aquele mar “português” das grandes
navegações, cantado na Mensagem de Fernando Pessoa. Por isso era preciso
vivê-lo no fascínio da minha solidão no meio de tantos passageiros, no meu
íntimo silêncio, na dimensão do horizonte, nas nuvens pintando o fim da tarde
sobre o oceano e no esplendor dos crepúsculos refletidos no espelho das águas.
Lembrava-me das páginas de Melville, de Hemingway, de Joseph Conrad, de Pessoa.
Ah! Quantas vezes reli Moby Dick, na
minha juventude! Quantas vezes parti e aportei na Ode Marítima. Aquele grande
veleiro há muito sumira na distância e alguns barcos pesqueiros cruzaram nossa
rota aquela tarde. Sentado na popa, vi a noite se anunciar com o frescor das
sombras e uma suave aragem. Chegou com a primeira estrela, com a palidez da lua
e o horizonte morrendo. Ao sul, o facho luminoso de um farol dançava na
penumbra . Muitas luzes se acendiam num ponto do litoral. Por onde singrava agora
o Rossini? Que dimensão era aquela, cada vez mais iluminada?Seria Chimbote, o maior porto pesqueiro do Pacífico sul? Se era, não
sei. Tudo o que via então eram luzes acendendo-se a distância e outras se
movendo lentamente nas águas da costa. Enfim, a noite chegou solene, soberana e bela.
A noite, em alto mar, envolve, com sua magia, os navegantes. Sobre isso alguns
livros me contaram histórias fantásticas. Muitos anos depois daquela travessia,
lendo um relato de Amyr Klink, encontrei esta passagem que lembrou minhas duas
noites no Rossini:
Vivi momentos de intensa beleza à noite,
quando fazia passeios à proa do navio. Debruçado na ponta extrema do convés,
com meio corpo além da borda, como se fosse uma carranca do São Francisco,
distante das máquinas e em total silêncio, passava horas seguidas com os olhos
presos na imensa onda levantada pelo bulbo de proa que abria caminho no mar.
Numa dessas noites, assisti pela primeira vez
na vida a um espetáculo quase irreal, que muitos velhos marujos ainda não
tiveram a felicidade de ver: um arco-íris de lua. Em plena noite de lua cheia,
chovendo no sul, um fantástico arco-íris no céu...3
Dizem os marinheiros que há um momento, no mar, em que tudo se cala. Calam-se
as ondas, cala-se o vento e o mar nos fala com seu encanto, como as sereias envolveram
Ulisses com seu canto. Hoje, ao recordar
aquela pequena viagem, eu penso nas grandes travessias e nesse incomparável
navegante chamado Amyr Klink, a cruzar solitário, tantos dias, tantas noites,
em tantos mares. Em alguma parte da minha poesia meus versos também navegaram
num saudoso tempo, para dizer do mar:
tua voz de barítono
conheço tua zangada pronúncia
tuas lanças arrojadas pelos braços da tormenta
conheço tua suave dança
na onda calma e inumerável
na crista transformada em súbita canção de espumas
conheço-te na beleza da baía amanhecida
na hora melancólica do crepúsculo
e no teu dorso enluarado.
e a espuma se estendendo sobre a areia
me mostraste a nudez e o encanto das praias solitárias
a preamar e a vazante
e o teu perfil de mastros e gaivotas
me deste a magia do horizonte
uma vela solta ao vento
e um barco de papel para os meus sonhos
mas nunca me mostraste
a extensão azul dos teus domínios
e nem um indício sequer dos teus enigmas.
nunca pude navegar tuas distâncias.
Deste banquete
me deste apenas o paladar salgado dos meus versos
minha sílaba de sal
e a tua própria essência salpicada entre meus dedos
molécula elementar
unânime cristal
para que na minha dieta imprescindível
eu possa provar teu sabor todos os dias.4 ”
Manoel de Andrade, in Nos rastros da utopia, uma memória crítica da América Latina nos anos 70, Escrituras Editora, São Paulo, 2014. pp. .829-840
Manoel de Andrade, poeta de Curitiba (Brasil), tem vários livros publicados . É sempre um prazer evocá-lo . Neste tempo em que a utopia se enferma entre guerras e intempéries , convém recordar que, de todos os valores utópicos do século passado, o mais precioso foi a reconquista da Liberdade. Manoel de Andrade foi um dos que lutou pela liberdade contra a tirania que sufocava a América Latina , na segunda metade do século passado.
Neste belíssimo e extenso livro de memórias, ressalta a força e a esperança deste poeta que soube lutar, através da palavra e em nome de um continente, contra o opróbrio do vil despotismo.
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