quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Entre o orvalho da tarde e o orvalho da manhã

Tristeza
 
Falo-me em versos tristes,
Entrego-me a versos cheios
De névoa e de luar;
E esses meus versos tristes
São ténues, céleres veios
Que esse vago luar
Se deixa pratear.
 
 
Sou alma em tristes cantos,
Tão tristes como as águas
Que uma castelã vê
Perderem-se em recantos
Que ela em soslaio, de pé,
No seu castelo de prantos
Perenemente vê. . .
Assim as minhas mágoas não domo
Cantam-me não sei como
E eu canto-as não sei porquê.
                             6-7-1910
Fernando Pessoa, in  Poesia do Eu - Obra essencial de Fernando Pessoa, Editora Assírio & Alvim – 2006 
Sol nulo dos dias vãos
 
Sol nulo dos dias vãos,
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!
 
Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!
 
Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De a não mostrar a ninguém!
Fernando Pessoa, in  Poesias. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995), 1ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: Dez. 1924.
Ah, a esta alma que não arde

Ah, a esta alma que não arde
Não envolve, porque ama
A esperança, ainda que vã,
O esquecimento que vive
Entre o orvalho da tarde
E o orvalho da manhã.
                         1930
Fernando Pessoa, in  Poesias Inéditas (1919-1930). (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). 

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