O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento dela - em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz.
Fernando Pessoa
“O provincianismo em Portugal tem sido
profusamente praticado por algum jornalismo, maioritariamente ausente dos
problemas do mundo e concentrado nos vãos de escada da política nacional. O
paradigma desta situação encontro-o numa comentadora que afirmou, candidamente,
que enquanto os países da Europa resolvem os problemas de saúde pública com
mestria e sucesso, o pobre Portugal, entregue aos bichos, enfrenta questões que
em nenhum outro país europeu se levantam: a crise da saúde pública, os
problemas na educação, as greves, a insatisfação social, os efeitos da inflação
e da guerra. Tudo desconhecido para lá de Badajoz! Para esta comentadora
provinciana, que deve abster-se cuidadosamente de ler quaisquer jornais
estrangeiros, todo o mal se concentra neste país ingrato que é o nosso.
Entender que as nossas crises estão
ligadas às crises mais gerais que enfrentam as sociedades contemporâneas está
fora do alcance de um jornalismo casuístico, de snipers bem treinados e
concentrados em pequenos objetivos partidários, orgulhosamente ignorantes do
que se passa lá fora. Felizmente não são todos, mas são eles que dão o tom e o
lamiré que se pretende passar à opinião pública.
Os portugueses comuns, obrigados a ser
cosmopolitas pela emigração e pela expatriação a que os obriga a pobreza do
país, têm uma visão mais lúcida das coisas, que se exprime no adágio popular
"cá e lá más fadas há". Mas espanta que, face aos problemas da saúde
e da educação, ninguém, a não ser alguns especialistas, tenha trazido ao debate
público as respostas e as políticas que outros países da Europa e do Mundo
adotaram para enfrentar estas crises.
O nosso provincianismo exprime o
sentimento de inferioridade que sempre tivémos face aos mais ricos e poderosos.
Mas também a distância que estabelecemos entre nós e o mundo, verdadeiro
círculo de giz caucasiano, que nos torna ensimesmados numa pátria que queremos
absolutamente diferenciada das outras, para o bem ("orgulhosamente
sós") ou para o mal ("a choldra, a piolheira").
Eça de Queirós (sempre este homem
fatal!) conta a fábula de uma pacata família burguesa que lê tranquilamente o
seu jornal. Primeiro, vem a notícia de terríveis cheias que vitimaram milhares
de pessoas na China. O pai de família vira a página do jornal e todos comentam
distraidamente, dizendo num suspiro "coitados". Depois, um desastre
ferroviário algures na Europa. O interesse aumenta, alguma emoção se exprime e
volta o dono da casa a virar a página. E, de repente, tudo muda: uma senhora da
terra, conhecida da família, tinha torcido um pé! A solidariedade foi imediata
e unânime, a compaixão fez elevarem-se as vozes, todos queriam ler a notícia no
jornal. Porque só sentimos verdadeiramente as dores que estão mais próximas de
nós.
Essa visão provinciana corresponde,
não apenas ao nosso difuso sentimento de sermos gente aparte do resto do mundo,
geniais numa perspetiva, medíocres noutra, mas também à humana e comum condição
de sempre nos afetar mais aquilo que está próximo.
A nossa comunicação social tem
contribuído para acentuar na opinião pública esta ideia de isolamento,
magnífico ou grotesco, do nosso país, ao não dar atenção às crises e
enfrentamentos que vivem as sociedades europeias e ocidentais. Mantêm-nos
informados sobre a guerra na Ucrânia, para reforçar a ideia de que as
sociedades liberais são imunes às grandes crises, que apenas lhes podem chegar
do exterior.
Cultivámos demasiado tempo a ilusão
confortável de serem as guerras coisas do passado. Quem me abriu os olhos a
esse respeito foi um diplomata indiano a quem eu fui dizer que a Alemanha era a
maior potência da Europa; o meu colega riu e disse "só há duas potências
na Europa, o Reino Unido e a França - porque só elas, na vossa Europa, têm
armas nucleares".
O comércio livre falhou em trazer-nos
a paz. A globalização agravou as nossas dependências. As motivações primárias
dos seres humanos, os instintos de morte e de guerra, continuam a prevalecer. A
guerra está uma vez mais a alastrar na Europa.
Mas Portugal, como dizia um outro
personagem queirosiano, continua a ser "um torrãozinho"...
Luís
Castro Mendes,(Diplomata
e escritor), em crónica publicada no DN , de 14 Fevereiro de 2023.
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