«O
que há a redimir é a adequação deste milagre brutal de nos sabermos uma
evidência iluminada, de nos sentirmos este ser que é vivo, se reconhece único
no corpo que é ele, na lúcida realidade que o preenche, o identifica nas mãos
que prendem, na boca que mastiga, nos pés que firmam, de nos descobrirmos como
uma entidade plena, indispensável, porque ela é de si mesma um mundo único,
porque tudo existe através dela e é impossível que esse tudo deixe de existir,
porque ela irrompe de nós como a pura manifestação de ser, e o «ser» é a única
realidade pensável — o que há a redimir é a adequação desta fantástica
evidência que nos cega e a certeza de que ela está prometida à morte, de que o
seu destino é a impossível e absoluta certeza do não-ser, da pura ausência, da
totalidade nula, da pura irrealidade. Colaborar com a vida, aceitar a validade de uma norma, forjar uma regra para a distribuição da nossa acção e interesse - sim. Mas é impossível, antes disso, desviarmos os nossos olhos da fascinação da vertigem , e vermos , vermos bem, de que fundas raízes gostaríamos de entender tudo quando realizássemos. É uma tentativa absurda , meu amigo, toda a gente no-lo diz - toda a gente que desconhece essa força que nos fascina. Mas eu sei que só se é homem , plenamente , quando se sabe . A escala de tudo quanto povoa a terra estabelece-se-nos aí, no saber. A ilusão da plenitude , a ficção de uma quotidiana divindade, essa que se define por uma certa instalação na permanência, forja-se apenas de uma inconsciência animal. Somos homens, não somos deuses nem pedras. Se a grandeza que nos coube foi essa ao menos de saber , conquistemo-la até onde , nos limites das evidências primeiras , ela se nos anuncia. E se o "absurdo" é a face desses limites , assumamo-lo como quem não rejeita nada do que é ainda nós próprios. A cobardia não está em assumir esses limites , mas em recusá-los , como o não está em reconhecer uma doença, mas em não fitá-la de frente. Só se é justo, »corajoso, pela assunção consciente do que nos ameaça e por isso o bruto não é heróico. O "para quê" que nos antepõem todos os homens sensatos implica um programa utilitário de todo o instinto prático e animal. Mas nós , contra tudo o que povoa a terra, temos o fulminante poder de sabermos quem somos. É aí que cabe a nossa interrogação, fascinante e sem limite."
Vergílio Ferreira, in Carta ao Futuro, Livraria Bertrand, 1981,pp.66-
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