(No centenário de Eugénio de Andrade, recorda-se um interessante texto, publicado a 11 de Abril de 2007.)
Ela foi a mulher da vida de Eugénio de Andrade
por Inês Nadais
"Houve duas figuras femininas no mundo de Eugénio: a mãe e
Ana Maria Moura. Esta é a história dela e dos 30 anos que passou com ele.
Se Eugénio chegasse hoje a casa, encontraria tudo como
deixou: as chaves no móvel do corredor, a lata de chá inglês na cozinha, o
roupão pendurado num cabide da casa de banho, os comprimidos para dormir na
mesinha-de-cabeceira, os óculos em cima da secretária, a última remessa de
livros da Assírio & Alvim na mesa do café e a gata, Miki, ao sol, no
sofá.Provavelmente voltaria a chamar por Ana Maria Moura - "Anda para
cima, fecha o quiosque" - e ela subiria. Também está onde ele a deixou, há
quase dois anos.
Ana Maria Moura nunca esteve preparada para perder Eugénio de Andrade - ainda
não está. "Vou ao cemitério todos os dias: mudar a água, mudar as flores,
falar com ele. Sei que não tenho resposta, mas se não for lá, se não estiver
com ele, não me sinto bem", diz, sentada num sofá desfigurado pelas unhas
da última gata de Eugénio, que também anda por ali, como ele: "Às vezes
ainda ouço a voz dele, quando estou sozinha. Estava constantemente a chamar por
mim." Não é a única a contar essa história, a história dos anos maus entre
o segundo e o primeiro andar da casa do Passeio Alegre: "(...) Ela
percorria/ com todo o terror do desalento diário/ cada corredor por que me
guiava,/ firme, com o denodo da amargura./ Ele conheceu-me e não me disse
nada./ Pediu (sempre devia pedir à sua protecção)/ com um filtro de viço, 'Ana,
a antologia, a do gato, que lhe dediquei' (...)/ Viu quanto eu o via entregue à
pessoa do mundo que melhor o merecia/ Aquela mulher. Com o Gil dera-lhe um
neto/ e de vária difamante mentira o protegeram/ (a homossexualidade nunca teve
democracia em Portugal) (...) Além da mãe, foi a única figura feminina/ por
aquele homem trancado consentida (...)", escreveu o poeta Joaquim Manuel
Magalhães num texto incluído em A que Cuida - Poemas para Ana Maria Moura em
homenagem a Eugénio de Andrade, a antologia que a editora Modo de Ler lança
hoje, às 21h30, na Cooperativa Árvore, no Porto, no âmbito do programa de
comemorações dos 60 anos de As Mãos e os Frutos.
Nunca se tinha falado tanto dela. Mas ela continua a só querer falar de Eugénio
como se não houvesse vida além dele. E por um lado não há: cuidar dele foi a
única missão impossível de Ana Maria Moura. "Fiz tudo o que pude para não
o perder. Sabia que era impossível, mas fiz tudo", sublinha. Agora faz
tudo o que pode para o recuperar: incluindo esta viagem. Foi há mais de 30 anos.
A família de Eugénio
Ana Maria Moura "estava para casar" quando conheceu Eugénio de
Andrade. Tinha vindo para o Porto sozinha, com nove anos: "Nasci em
Jazente [concelho de Amarante] a terra do Abade de Jazente, que também escrevia
poesia. O Eugénio é que falava muito disso. Éramos oito irmãos, uma família
muito pobre, e eu vim trabalhar para o Porto: em confecções, em fábricas de
calçado. Aos 14 anos fui para as artes gráficas. Só saí de lá quando o Eugénio
quis que eu viesse trabalhar para a Fundação [Eugénio de Andrade], para não
ficar tanto tempo sozinho. O meu pai tinha morrido muitos anos antes. Mas eu
nunca tive muitos laços com ele, era uma pessoa difícil. O meu verdadeiro pai
foi o Eugénio." Também tinha sido um pai ou pelo menos um padrinho para
Gervásio Moura, o homem com quem Ana Maria casou. "Ele conhecia o Eugénio
desde os seis ou sete anos. O [escultor] José Rodrigues tinha um atelier nas
Fontainhas e a avó do meu marido morava perto, ele andava sempre por ali a
brincar. O Zé às vezes chamava os miúdos para porem água no barro, dava-lhes
umas moedas. E o Eugénio, que estava muito pelo atelier, gostava do miúdo e
ofereceu-se para ser padrinho dele. Na Páscoa dava-lhe sempre o folar."
Quando Ana Maria Moura teve o Miguel, a quem Eugénio de Andrade dedicou Aquela
Nuvem e Outras, passaram a ser uma família. "Quando o viu pela primeira
vez, o Miguel tinha cinco dias. O Eugénio ainda vivia em Duque de Palmela e
quis que eu pusesse o menino numa manta que ele tinha estendido em cima do
sofá. Queria mexer no Miguel, mas tinha tanto medo de lhe segurar. Adorava-o.
Ainda tenho a primeira matrícula do meu filho no Colégio dos Órfãos, assinada
pelo Eugénio - foi sempre ele o encarregado de educação do Miguel. Quando se
reformou, também foi para ajudar a tratar dele. Ia buscá-lo ao colégio,
dava-lhe o lanche, ajudava-o a fazer os deveres, levava-o ao centro de saúde
quando tinha febre. Tinha uma preocupação de pai, de mãe, que às vezes até era
exagerada: quando o Miguel ficava doente, o Eugénio ficava doente também."
Nessa altura, ainda não viviam juntos. Antes do jantar Ana Maria ia buscar o
Miguel a Duque de Palmela e estavam os dois deitados no corredor a atirar
berlindes à gata. Quando a Câmara Municipal do Porto lhe ofereceu uma casa, na
Foz do Douro, para ele e para a fundação, Eugénio já não quis ir sozinho: a
fundação ocupou o rés-do-chão, ele ficou no primeiro andar, Ana Maria, Gervásio
e Miguel instalaram-se no segundo. "Queria a família perto dele, já tinha
muito medo da doença, da velhice." Preparava o pequeno-almoço às 7h00 -
"uma chavená de chá inglês, muito bom, que ele tomava de pé, na
cozinha" -, sentava-se à secretária a trabalhar e à tarde, depois do
almoço, Ana Maria obrigava-o a dar um passeio. Jantavam juntos, no segundo andar.
"O Eugénio não comia muito, era uma pessoa regrada. E era com as coisas
mais simples que ele se deliciava: os jaquinzinhos fritos, as cerejas, as
ervilhas de quebrar cozidas com um pouquinho de pescada, melão, melancia. Mas
era um doido por arroz-doce. Se houvesse arroz-doce no frigorífico, ele
levantava-se de noite para comer um pratinho."
Lavar, vestir, alimentar
Mas isso era antes. Depois Eugénio adoeceu (tinha uma doença muscular
degenerativa) e tudo mudou. "Enquanto ele esteve internado, eu era a
última a sair do hospital. Ele estava ligado àquelas máquinas todas, não reagia
a nada, mas eu nunca deixei de falar com ele. Quando saía, ficava na paragem à
espera do autocarro das 20h45 e olhava para a janela, via os enfermeiros dentro
do quarto e sofria terrivelmente por não estar lá. Na minha cabeça, eu podia
protegê-lo. Quando veio para casa, ele não parava de chamar por mim. Eu entrava
no quarto e ele ficava com os olhos brilhantes, parecia um menino."
Durante anos, ele tinha sido o pai de Ana Maria Moura. Passou a ser o filho:
"O sangue dele não corre nas minhas veias mas era como se corresse. Eu
pegava no Eugénio ao colo e era como se estivesse a pegar no Miguel." Fez
muito mais do que isso: lavar, vestir, alimentar, sentar, deitar, tratar (e
seria capaz de falar disso horas seguidas, minuciosamente, porque foram anos a
fazer tudo). "Punha-o num cadeirão à janela, a ver o mar. Às vezes
pedia-lhe para me dizer um poema e ele lá começava 'Tinha um cravo no meu
balcão'... Levava-lhe o jornal todos os dias, insisti sempre com as notícias e
com a música. Perguntava-lhe que livros ele queria. A última coisa que lhe li
foi Camilo Pessanha. Gostei tanto que já reli três ou quatro vezes: vejo ali o
Eugénio."
Os amigos do Eugénio também vêem ali o Eugénio, quando olham para Ana Maria. O
Eugénio a comer um iogurte, ao fim da tarde, como no poema de Manuel António
Pina. "Às vezes demorava três quartos de hora para lhe dar o iogurte, ele
era como um passarinho. Depois deixou de comer. Mas no último aniversário, para
festejar, comprei-lhe um pastel de nata e demos-lhe umas colherinhas. Só de
creme. No último dia o Eugénio deixou de falar, mas estava consciente. Eu
dizia: 'Eugénio, respira devagarinho', e ele ouvia. Já não lhe dei o leite. Às
3h30 [de 13 de Junho de 2005] o médico ucraniano que tínhamos aqui tocou à
campainha, e eu percebi que tinha acabado. Ele já não estava vivo. Mas parecia
feliz, tinha um sorriso muito bonito."
Agora é ela que não quer viver sozinha. "Preciso de estar perto das coisas
do Eugénio. Quando tenho saudades, vou a casa dele, ponho um CD e sento-me lá
com a gata ao colo."
Inês Nadais (texto) e Paulo Pimenta (fotos), publicado no Jornal Público, 22 de Agosto de 2009
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