quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

O escritor é um profissional


A literatura não é uma realização

"Não quero dizer que eu me realize na literatura. Fui para a literatura devido a uma dificuldade da fala. Eu era discriminado no colégio. Os directores chamavam meu pai e diziam: “Tire esse menino daqui, ele está sofrendo muito, é discriminado porque fala tudo errado”. E, realmente, eu falava tudo errado. Mas, quando comecei a escrever, vi que ninguém zombava de mim. Hoje, zombam, mas naquele tempo não (risos). Eu pedia para minha mãe fazer um bife à milanesa, para fazer isso e aquilo. Eu deixava recados. E vi então que a letra, a literatura era o meu destino. Mas isso foi uma circunstância minha. Tem gente que vai para a literatura acreditando que ela é uma suprema realização. Eu sou contra isso. Não acredito na torre de marfim. O escritor é um profissional, é um homem. Pode ser um artista, mas é um sujeito .

• A sociedade é corrupta
A sociedade tem que mudar, não os políticos. Porque nenhum deles, pelo menos daqueles que têm cargos executivos, está lá por conta própria. Todos têm aquilo a que se chama legitimidade. É evidente que sempre haverá o caso isolado de um camarada que comprou ou roubou votos, mas o grosso foi eleito, tem legitimidade. Eles representam uma sociedade e essa sociedade não quer se ver no espelho deles. A sociedade se julga uma vestal, uma matrona de Éfeso, uma rainha de Sabá, cheia de glória. A sociedade não peca, a sociedade não erra, a sociedade está sempre com a razão. E cobra dos seus representantes uma atitude que ela não tem. Porque a sociedade é basicamente hipócrita. Ela teve a capacidade de atravessar todas as eras sendo o algoz do indivíduo. Por mais que grandes homens ao longo da história — Cícero, Platão, Cristo, Maomé, Montesquieu — tenham tentado modificá-la, eles não conseguiram. É mais ou menos a tese de Rousseau: o homem talvez seja bom, mas a sociedade é corrupta e corrompe o ser humano. De maneira que não acho que seja o caso de os políticos melhorarem a sociedade. A sociedade é que tem que melhorar os políticos.

• Aos escritores
O escritor é como o poeta. Ele se faz. Ele pode, é evidente, aprender o mecanismo, a técnica de escrever correctamente. Pode tomar um modelo —Vieira, Rui Barbosa, Machado de Assis. Pode procurar imitá-lo inicialmente e, depois, adquirir autonomia. Tudo isso ele pode fazer. Mas se ele não tiver dentro dele aquele grau de observação, aquele poder de transubstancialização; se não souber pegar um detalhe ínfimo, pequeno, provisório, datado e transformá-lo em obra de arte, em coisa permanente; se não tiver nada disso dentro dele, ele terá que fazer outra coisa. Ele poderá ser um bom engenheiro, poderá ser um bom veterinário, poderá ser tudo, mas nunca um escritor."
Carlos Heitor Cony, na edição do  Paiol Literário de Agosto de  2009.

Carlos Heitor Cony

Sobre Carlos Heitor Cony

"Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro, em 1926 e faleceu em 05 de Janeiro de 2018, na mesma cidade. É filho do jornalista Ernesto Cony Filho
Em 1952, é redactor da Rádio Jornal do Brasil. De 1958 a 1960 é um dos jovens escritores que colaboram no SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil), com contos, ensaios, traduções. Em 1961, começa a trabalhar no Correio da Manhã, do qual foi redactor, cronista, editorialista e editor.  Com a revolução de 1964, é preso várias vezes e passa um período na Europa e em Cuba. Numa das prisões (em 1965), teve como companheiros, entre outros, Flávio Rangel, Glauber Rocha, Antonio Callado, Mário Carneiro, Jayme Azevedo Rodrigues, Márcio Moreira Alves, Thiago de Mello e Joaquim Pedro de Andrade.
Colabora por mais de 30 anos na revista Manchete e dirigiu Fatos & FotosDesfileEle Ela. De 1985 a 1990, foi director de Teledramaturgia da Rede Manchete, produzindo e escrevendo sinopses das novelas A Marquesa de SantosD. BejaKananga do Japão. Em 1993, substitui  Otto Lara Resende na crónica diária do jornal Folha de S. Paulo, do qual foi membro do Conselho Editorial. Comentarista diário da CBN, participava do Grande Jornal com o programa “Liberdade de Expressão”.  Como ficcionista, é autor de livros como O ventre, Tijolo de segurança, Informação ao crucificado, Antes, o verão, Pilatos, Quase memória, A casa do poeta trágico, Romance sem palavras e O adiantado da hora, entre outros. Escreveu romances, ensaios biográficos, contos, crónicas e adaptações de clássicos. É vencedor de prémios como   Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras  e  Nacional Nestlé de Literatura de 1997Ganha duas vezes o Prémio Manuel Antônio de Almeida, com os romances A Verdade de Cada Dia, em 1957, e Tijolo de Segurança, em 1958, bem como recebe por três vezes  o Prémio  Jabuti , em 1996, 1997, 2000. Os romances Quase Memória e A Casa do Poeta Trágico ganharam o Prémio “Livro do Ano”, em 1996 e 1997, conferido pela Câmara Brasileira do Livro. Em 1997 é Prémio Nacional Nestlé de Literatura  pelo romance O Piano e a OrquestraEm 1998, o governo francês condecorou-o com  L’Ordre des Arts et des Lettres. 
Foi o Quinto ocupante da Cadeira nº 3 da Academia de Letras do Brasil, eleito em 23 de Março de 2000, na sucessão de Herberto Sales e recebido em 31 de Maio de 2000 pelo académico Arnaldo Niskier."

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