Recuperamos uma pequena e interessante entrevista do filósofo Tzvetan Todorov , falecido em Fevereiro de 2017, à revista Bravo, a propósito do seu livro A Literatura em Perigo!
Tzvetan Todorov – “Literatura não é Teoria, é Paixão”
"Tzvetan Todorov afirmava que o excesso de “ismos” afasta os jovens da leitura, e que a principal função de um professor é ensinar o aluno a amar os livros
por Anna Carolina Mello e André Nigri
Nascido em 1939 em Sófia, na Bulgária, e naturalizado francês, o filósofo e linguista Tzvetan Todorov é um dos mais importantes pensadores do século XX. Traduzida para mais de 25 idiomas, a sua obra inspira críticos literários, historiadores e estudiosos do fenómeno cultural do mundo todo. No seu mais recente livro publicado no Brasil, A Literatura em Perigo, Todorov faz um mea culpa raro entre intelectuais. Ele diz que estudos literários como os seus, cheios de “ismos”, afastaram os jovens da leitura de obras originais – dando lugar ao culto estéril da teoria. De Paris, ele falou à BRAVO! por telefone:
BRAVO!: Gostaria que o sr. falasse sobre o seu primeiro contacto com a literatura quando criança, e como ela se transformou numa paixão.
Tzvetan Todorov: Eu cresci na Bulgária durante a Segunda Guerra, quando quase ninguém vivia em Sófia, sob constante bombardeio. A maior parte da população vivia fora da capital, em apartamentos divididos por várias famílias. Dentro da colectividade em que habitávamos, havia um especialista em literatura. Foi ele que me ensinou a ler, antes que eu atingisse a idade escolar. Ele me incentivou a praticar a leitura nos livros infantis, e logo comecei a gostar dos contos populares. Apreciava especialmente as histórias dos irmãos Grimm e As Mil e Uma Noites. Essas obras faziam minha alegria. Eu já tinha um sentimento do enriquecimento pessoal que o contacto com a ficção podia proporcionar.
Por que razão o contacto com a ficção é tão importante?
Os livros acumulam a sabedoria que os povos de toda a Terra adquiriram ao longo dos séculos. É improvável que a minha vida individual, em tão poucos anos, possa ter tanta riqueza quanto a soma de vidas representada pelos livros. Não se trata de substituir a experiência pela literatura, mas multiplicar uma pela outra. Não lemos para nos tornarmos especialistas em teoria literária, mas para aprender mais sobre a existência humana. Quando lemos, nos tornamos antes de qualquer coisa especialistas em vida. Adquirimos uma riqueza que não está apenas no acesso às ideias, mas também no conhecimento do ser humano em toda a sua diversidade.
A escola e a família têm um papel importante. As crianças não têm ideia da riqueza que podem encontrar num livro, simplesmente porque eles ainda não conhecem os livros. Deveríamos então ser iniciados por professores e pais nessa parte tão essencial de nossa existência, que é o contacto com a grande literatura. Infelizmente, não é bem assim que as coisas acontecem.
Quando nós professores não sabemos muito bem como fazer para despertar o interesse dos alunos pela literatura, recorremos a um método mecânico, que consiste em resumir o que foi elaborado por críticos e teóricos. É mais fácil fazer isso do que exigir a leitura dos livros, que possibilitaria uma compreensão própria das obras. Eu deploro essa atitude de ensinar teoria em vez de ir directamente aos romances, porque penso que para amar a literatura – e acredito que a escola deveria ensinar os alunos a amar a literatura – o professor deve mostrar aos alunos a que ponto os livros podem ser esclarecedores para eles próprios, ajudando-os a compreender o mundo em que vivem.
Ao comentar esse assunto no livro, o sr. fala em “abuso de autoridade”. Poderia explicar melhor?
É um abuso de autoridade na medida em que é o professor quem decide mostrar aos alunos o que é importante, com base num programa definido previamente pelo Ministério da Educação. E isso é sempre uma decisão arbitrária. Não temos o direito de reduzir a riqueza da literatura. O bom crítico – e também o bom professor – deveria recorrer a toda sorte de ferramentas para desvendar o sentido da obra literária, de maneira ampla. Esses instrumentos são conhecimentos históricos, conhecimentos linguísticos, análise formal, análise do contexto social, teoria psicológica. São todos bem-vindos, desde que obedeçam à condição essencial de estar submetidos à pesquisa do sentido, fugindo da análise gratuita.
Como conciliar esse desejo de liberdade num sistema em que o professor tem que atribuir notas, como ocorre no Brasil e na França?
Acredito que o essencial é escolher obras literárias que sejam, por sua complexidade e temas, acessíveis à faixa etária a que se destinam. Cabe ao professor mostrar o que esses livros têm de enriquecedor para os alunos, levando em consideração a realidade deles. O importante é não ter medo de estabelecer pontos em comum entre o presente dos alunos e do sentido dos livros.
É verdade que hoje lemos muito diante da tela, mas não acho que o livro vá desaparecer. Ele estabelece uma relação de possessão e de interiorização que nós não podemos estabelecer com algo tão imaterial quanto o texto na tela do computador. Claro que eu mesmo, quando busco uma referência, o faço facilmente diante da tela. Mas se eu desejo me embrenhar num livro, se eu quiser me render ao seu interior, é preciso que seja com o objecto “livro”. A isso ele se presta maravilhosamente."Anna Carolina Mello e André Nigri, Revista Bravo!
O LIVRO: A Literatura em Perigo, de Tzvetan Todorov, Difel, 96 pags
Sem comentários:
Enviar um comentário