Castelo de Guimarães |
Trás- os- Montes |
Casa do Seminário, Gralhas , Montalegre |
"Coimbra, 25 de Setembro de 1988 - Meditação para servir de preâmbulo a um roteiro francês da nossa realidade:
PORTUGAL
Há nações que nascem feitas e nações que se fazem. Portugal é das que se fizeram, contra todos e contra tudo, e nunca teve sossego nas fronteiras que chegaram a situar-se nos cinco continentes. Começou o seu caminho independente nas brumas da pré-história, dolménico, litoral magro, debruado por um mar aberto e convidativo, que navegou desde logo em todas as direcções e transformou mais tarde no palco de uma das maiores façanhas de que a civilização ocidental se pode orgulhar . Microcosmos variegado, ora montanhoso, ora ondulado e plano, de cada miradoiro é inédito e diverso. Árido aqui, verdejante ali, terroso acolá, passeá--lo é conhecer em miniatura as feições aráveis da Terra. Sulcado por rios líricos ou dramáticos , consosnat o leito, espelha-se neles ao natural o perfil da paisagem. Um Minho bucólico, uma Estremadira monumental , um Ribatejo toureiro. Invadido sucessivamente por muitos povos , a nenhum se submeteu inteiramente. Antes pelo contrário, resistiu-lhes a conviver . Na essência, permaneceu o mesmo, dono e senhor da sua personalidade profunda, livre , visionário, aventureiro, obstinado. E sempre cordial. Quem percorre o país de norte a sul pode queixar-se de tudo, menos dos panoramas e , ainda menos, das gentes. Austeras em Trás-os Montes, sóbrias nas Beiras, graves no Alentejo, reservadas no Algarve, identifica-as, no entanto, a mesma índole solícita, prestante, disponível. Criaturas simples, chegadas ao húmus, tudo nelas tem ainda o sabor saudável do autêntico e primordial. Na maneira como trabalham, cantam, dançam, rememoram , o observador autêntico pode descobrir os sinais vivazes de uma sã tradição rural, comunitária, o vizinho a dar a mão ao vizinho, o velho a ensinar o novo, o prudente a avisar os incautos. Marginal à Europa, nem sempre a acompanhou nas suas proezas técnicas e antropotécnicas. E , nesse capítulo, à primeira vista, pode parecer retrógrado. Mas essa falsa inércia , esse ilusório sono letárgico, é apenas a paz de boa consciência de quem conhece o preço de certas cedências ao progresso. De quem lhe pressente a efemeridade. No decorrer dos séculos , este povo pacífico, que sempre se soube defender e nunca soube agredir, aparentemente parado no tempo, foi a própria encarnação do espírito renovador, na tolerância , na curiosidade, na inventiva. O primeiro a abolir a pena de morte, a dar a independência a uma das suas maiores colónias, a dobrar os muitos cabos das Tormentas. Original na maneira de ser, de sentir e de pensar, a cultura universal deve-lhe um modo específico de encarar a vida e os valores. Nos seus Cancioneiros, no seu rifoneiro, no seu artesanato, está documentada uma singularidade temperamental e intelectual que faz a admiração de quem a conhece. Todos os viajantes de boa-fé que nos visitaram no passado e nos visitam no presente a testemunham e enaltecem. Fundadora de novas pátrias , esta pequena pátria, que com os descobrimentos marítimos realizou a maior epopeia dos tempos modernos , arredondando definitivamente o globo nas mentes coevas, ainda hoje a povoar e a unir a orbe, num fluxo emigratório constante. E é essa vocação planetária, essa inquietação dispersiva que faz do português um peregrino das sete partidas , um cidadão do mundo. Despido de pruridos raciais, uma vez em terra alheia , miscigena-se, adapta-se, integra-se , mas sem perder nunca os traços nativos. E quando a saudade - um sentimento sem tradução afectiva e vocabular - o crucifica , regressa e retoma, na aldeia de onde saiu, o seu lugar de membro da junta de freguesia ou de mordomo de festa.
Claramente que, ao lado deste Portugal telúrico e arcaico, ainda não desfigurado na alma, escudado na sua castidade moral, existe um outro, contemporâneo do presente, cosmopolita e cultivado, que tem pergaminhos nas artes , nas letras, nas ciências, na política e na religião. Que erigiu Alcobaça e os Jerónimos, que escreveu Os Lusíadas , que pintou os painéis de S. Vicente, que comentou Aristóteles e deu à Igreja um Papa e um Doutor. Mas o Portugal letrado, por muito que tenha feito, não pode, nem de longe, nem de perto, comparar-se ao iletrado , pela tenacidade, pela honradez, pela audácia, pela graça espontânea e pela nobreza de sentimentos. É que o Portugal eterno, o que nunca traiu , o que dá esperança , é o das revoluções populares, o que trabalha dia e noite sem esmorecer, o que acaba sempre por ter a última palavra nos acontecimentos, o do arado e do remo. É ele que, anónimo e humilde, não cabe nas crónicas , mas avaliza alguns dos mais significativos passos da história da humanidade."
Miguel Torga, in "Obra completa , Diário XV" , Círculo de Leitores, pp. 1527, 1528, 1529
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