Na sua despretensão, humaniza e é essa humanização que lhe confere certa profundidade de significado. A crónica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas ou das pessoas. Em lugar de oferecer um lugar excelso, numa revoada de adjectivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. É amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais fantásticas e directas.
António Cândido (org.), in “A crónica: o género, sua fixação e suas transformações no Brasil”,Campinas: Unicamp, 1992, pp. 13,14.
Escolha o seu sonho
"Devíamos poder preparar os nossos sonhos como os artistas, as suas composições. Com a matéria subtil da noite e da nossa alma, devíamos poder construir essas pequenas obras-primas incomunicáveis, que, ainda menos que a rosa, duram apenas o instante em que vão sendo sonhadas, e logo se apagam sem outro vestígio que a nossa memória.
Como quem resolve uma viagem, devíamos poder escolher essas explicações sem veículos nem companhia – por mares, grutas, neves, montanhas e até pelos astros, onde moram desde sempre heróis e deuses de todas as mitologias, e os fabulosos animais do Zodíaco.
Devíamos, à vontade, passear pelas margens do Paraíba, lá onde as espumas crespas correm com o luar por entre as pedras, ao mesmo tempo cantando e chorando. – Ou habitar uma tarde prateada de Florença, e ir sorrindo para cada estátua dos palácios e das ruas, como quem saúda muitas famílias de mármore… – Ou contemplar, nos Açores, hortênsias da altura de uma casa, lagos, de duas cores e cestos de vime nascendo entre fontes, com águas frias de um lado e, do outro, quentes… – Ou chegar a Ouro Preto e continuar a ouvir aquela menina que estuda piano há duzentos anos, hesitante e invisível – enquanto o cavalo branco escolhe, de olhos baixos, o trevo de quatro folhas que vai comer.
Quantos lugares, meu Deus, para essas excursões! Lugares recordados ou apenas imaginados. Campos orientais atravessados por nuvens de pavões. Ruas amarelas de pó, amarelas de sol, onde os camelos de perfil de gôndola estacionam, com os seus carros. Avenidas cor-de-rosa, por onde cavalinhos emplumados, de rosa na testa e colar ao pescoço, conduzem leves e elegantes coches polícromos …
Quantos lugares, meu Deus, para essas excursões! Lugares recordados ou apenas imaginados. Campos orientais atravessados por nuvens de pavões. Ruas amarelas de pó, amarelas de sol, onde os camelos de perfil de gôndola estacionam, com os seus carros. Avenidas cor-de-rosa, por onde cavalinhos emplumados, de rosa na testa e colar ao pescoço, conduzem leves e elegantes coches polícromos …
… E lugares inventados, feitos ao nosso gosto; jardins no meio do usar; pianos brancos que tocam sozinhos; livros que se desarmam, transformados em música. […]
Devíamos poder sonhar com as criaturas que nunca vimos e gostaríamos de ter visto: Alexandre, o Grande; São João Baptista; o Rei David a cantar; o Príncipe Gautama…
E sonhar com os que amamos e conhecemos, e estão perto ou longe, vivos ou mortos… Sonhar com eles no seu melhor momento, quando foram mais merecedores de amor imortal…
Ah!… – (que gostaria de sonhar esta noite?)"
Cecília Meireles, em Crónica extraída do Livro “Escolha o seu sonho” . 4ª ed., Rio de Janeiro: Global Editora, 2016.
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