" Um homem muito sábio, escrevendo recentemente sobre o surgimento e o desenvolvimento da nossa espécie, sugere que a domesticação do cachorro teve a mesma importância que o uso do fogo para o primeiro homem. Pela associação com o cachorro, o homem dobrou a percepção e, além disso, o cão - dormindo aos pés do homem primordial - permitiu-lhe descansar um pouco sem ser perturbado por animais sorrateiros. Os usos do cachorro mudam. Um dos primeiros tratados sobre cães em inglês foi escrito por uma abadessa ou prioresa num grande convento religioso. Ela lista o cão de guarda, o de caçar coelhos, o cão da Espanha chamado spaniel e usado para encontrar aves feridas, o cão "venatório" etc. e, finalmente, diz: "Existem aqueles pequenos cães brancos levados por damas para afastar delas as pulgas". Quanta sabedoria havia aqui. O cãozinho de colo não era um enfeite, mas uma necessidade.
O cachorro em nossos dias, mudou de função. É claro que ainda temos cães usados para a caça e os galgos para as corridas, e os pointers, setters e spaniels para as complicadas profissões, mas, na população total de cachorros, estes são minoria. Muitos cães são usados como enfeite, contudo a maior parte serve de consolo para a solidão. O confidente de um homem ou de uma mulher. Uma plateia para os tímidos. Um filho para quem não tem filhos. Nas ruas de Nova York, entre as sete e nove da manhã, vê-se a lenta procissão de cachorro e dono seguindo da rua para a árvore, para a boca de incêndio, para o caixote de lixo. São cães de apartamento. São levados à rua duas vezes por dia e, embora seja um cliché, é espantoso como dono e cachorro se parecem. Chegam a andar igual, a ter o mesmo tipo de cabeça.
Nos Estados Unidos, estilos e cães mudam. Há alguns anos o airedale era o mais popular. Agora é o cocker, mas o poodle está quase lá. Há uns mil anos consigo lembrar de que havia boxers por toda a parte.
Nos Estados Unidos, tendemos a levar ao extremo raças de cães que não trabalham. Criamos collies com cabeça tão comprida e estreita que não conseguem mais encontrar o caminho de casa. O dachshund ideal é tão comprido e baixo que sua espinha cede. Nossos dobermanns são paranóicos. Desenvolvemos um boston bull com a cabeça tão grande que os filhotes só podem nascer por cesariana.
Não é sensato lamentar o cão de apartamento. Sua expectativa de vida é quase o dobro do cachorro do campo. O seu tédio, provavelmente, é muitas vezes maior. Certo dia entrei num táxi e dei o endereço de uma loja de animais. O motorista perguntou:
- O senhor quer um cachorro? Porque eu posso lhe arrumar um cachorro. Arranjo cachorros.
- Não é um cachorro, mas como é isso de arranjar cachorros?
- É assim - disse o taxista. - Sábado à noite, num apartamento, tem um sujeito e a mulher secando uma garrafa de gin. Aí pela meia-noite começam a brigar. Ela diz: "Esse seu cachorro é danado. Quem é que limpa a sujeira , o leva a passear e dá comida, e quando chega apenas lhe faz um carinho na cabeça. E o sujeito diz: "Não fale assim do meu cachorro". "Odeio-o", diz ela. "Tá bom colega", diz ele, "Se é assim que quer... Venha Spot", e ele e o cachorro vão para a rua. O sujeito senta-se num banco, pega o bicho ao colo e chora. Em seguida, os dois vão para um bar e o sujeito conta para todo mundo que mulher nenhuma pode tratar seu amigo assim. Bem, dali a pouco eles fecham o bar e já é tarde e o efeito do álcool começa a passar e o sujeito quer ir para casa. Aí, entra num taxi e dá o cachorro ao motorista. Acontece comigo todas as noites de sábado.
Já tive alguns cachorros espantosos. Um que recordo com prazer foi um english setter enorme. Via coisas incompreensíveis. Latia durante horas para uma árvore, mas só para aquela árvore. Na estação das uvas só comia uvas, que colhia da parreira, uma uva de cada vez. Na estação das peras vivia de peras derrubadas pelo vento, mas não tocava em maçãs. Com o passar dos anos foi ficando cada vez mais transcendental. Acho que finalmente acabou desacreditando das pessoas. Pensava que eram um sonho seu. Reunia todos os cães da vizinhança e fazia-lhes conferências ou sermões silenciosos e certo dia concentrou a atenção em mim por uns bons cinco minutos e depois foi embora. Ouvi falar dele em diferentes partes do estado. As pessoas tentavam fazê-lo ficar, mas num ou dois dias ele partia. Minha opinião era que tinha visões e tornou-se missionário. O seu nome era T-Dog. Muito tempo depois, a mais de cem quilómetros de distância, vi um letreiro pintado numa cerca que dizia “T-God”. Estou convencido de que ele trocou as letras de seu nome e desde então saiu pelo mundo para levar sua mensagem a todos os cães.
Tive todos os tipos de cachorro, mas há um que sempre quis e nunca tive. Nem sei se ainda existe. Costumava haver no mundo um english bull terrier branco. Era atarracado, mas rápido. O seu focinho era pontiagudo e os seus olhos eram triangulares, de forma que a expressão era de um riso cínico. Era amigável e nada brigão, mas se fosse forçado a lutar era óptimo. Fazia uma ideia favorável e decente de si mesmo e nunca era covarde. Era um cão pensativo, voltado para si mesmo, mas ainda assim tinha uma curiosidade enorme. Era pesado de ossos e ombros.O pescoço fazia um belo arco. Às vezes cortavam a orelha, mas nunca o rabo elevado. Era um bom cachorro para um passeio. Um cachorro excelente para dormir ao lado da cama de um homem. Era delicado em seus sentimentos. Sempre quis um deles. Pergunto-me se ainda existe no mundo. "
John Steinbeck, in A América e os americanos. Tradução de Maria Beatriz de Medina. organizado por Susan Shillinglaw e Jackson J. Benson. São Paulo: Record, 2004, pp. 173-175
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