terça-feira, 25 de setembro de 2018

Um dia voltaremos à Ilha Negra

Neruda
Por Julio Cortazar
“Tão próximo como está na vida e na morte, toda tentativa de ‘fixá-lo’ a partir da escrita corre o risco de qualquer fotografia, de qualquer testemunho unilateral: Neruda de perfil, Neruda poeta social, as abordagens usuais e quase sempre falíveis. A história, a arqueologia, a biografia, coincidem na mesma tarefa terrível: espetar a borboleta no cartão. E o único resgate que as justifica vem da região imaginária da inteligência, de sua capacidade para ver, em pleno voo, aquelas asas que já não são cinza em cada pequeno ataúde de museu.
Quando entrei pela última vez no seu quarto, na Ilha Negra, em Fevereiro deste ano, Pablo Neruda estava na cama, talvez já definitivamente imobilizado, e no entanto sei que naquela noite andámos juntos, por praias e sendas, que chegámos ainda mais longe do que dois anos antes, quando ele veio me receber na entrada da casa e me quis  mostrar as terras que pensava doar para que depois de sua morte erguessem ali uma residência para escritores jovens.
Assim, como se estivesse passeando ao seu lado e ouvindo as suas palavras, gostaria de dizer aqui a minha palavra de latino-americano já velho, porque muitas vezes no turbilhão da quase impensável aceleração histórica do século senti dolorosamente que para muitos a imagem universal de Pablo Neruda era uma imagem maniqueísta, uma estátua já erigida que os olhos das novas gerações olhavam com o respeito entremesclado de indiferença que parece ser o destino de todo bronze em toda a praça.
Gostaria de poder contar a estes jovens de qualquer país do mundo, com a simplicidade de quem encontra os amigos num bar, as razões de um amor que transcende a poesia por si mesma, um amor que tem outro sentido, diferente do meu amor pela poesia de John Keats ou de César Vallejo ou de Paul Eluard; falar do que ocorreu nas minhas terras latino-americanas nesta primeira metade de um século que já se confunde para eles na continuidade de um passado que tudo devora e confunde".
(…)“Conheci muito pouco o homem Pablo Neruda, porque entre os meus defeitos está o de não me aproximar dos escritores, preferir egoisticamente a obra à pessoa. Tive dois testemunhos do seu afecto por mim: um par de livros com dedicatória que me remeteu para Paris, sem jamais ter recebido nada meu, e uma página que enviou para a revista cujo nome não me lembro, na qual generosamente tentava aplacar uma falsa, absurda polémica entre José Maria Argüedas e mim , a propósito de escritores residentes e escritores exilados”.
(…) “Na minha primeira visita, dois anos antes, tinha me abraçado dizendo um ‘até logo’ que se cumpriria na França; dessa vez nos fitou por um instante, suas mãos nas nossas, e disse: “Melhor a gente não se despedir, não é mesmo?”, os fatigados olhos já distantes.
Era assim mesmo, não tínhamos que nos despedir; isto que escrevi é a minha presença junto a ele e junto ao Chile. Sei que um dia voltaremos à Ilha Negra, que o seu povo entrará por aquela porta e encontrará em cada pedra, em cada folha de árvore, em cada grito de pássaro marinho, a poesia sempre viva deste homem que tanto o amou”.
Julio Cortazar, in Obra Crítica/3,  Editora Civilização Brasileira , 2001

PABLO NERUDA, como era conhecido Neftalí Ricardo Reyes, nasceu em Parral, em 1904, e morreu em Santiago, Chile, em 1973. Em 1971, recebeu o Prémio Nobel de Literatura.

JULIO CORTÁZAR, filho de pais argentinos, nasceu em Bruxelas, em 1914; foi educado na Argentina, onde estudou Letras e trabalhou como professor em áreas rurais do país; era naturalizado argentino. Em 1951, mudou-se para Paris, onde morreu no ano de 1984.

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