Pour être poète, il faut croire à son génie; pour devenir artiste , il faut le mettre “ en doute”. L’homme vraiment fort est celui chez qui “ceci” augmente “cela”.
André Gide, Journal
Eugénio Lisboa nasceu a 25 de Maio de 1930 , em Lourenço Marques. É, hoje, dia do seu 88º aniversário. Oitenta e oito anos de vida partilhada com os seus leitores, através de um magnum opus, as Memórias, “Acta Est Fabula”, repartido por sete imperdíveis volumes.
Mas não é só de memórias que se ocupa a sua obra . É um autor multifacetado que se espraia por géneros e temas diversos, através de um olhar atento, vivo, perspicaz e inteligente. Um extenso património, construído numa linguagem luminosa que se ampara na clareza e na singular erudição de quem é refém de uma cultura larga e imensurável.
Premiado, homenageado, agraciado e patrono de um Prémio Literário, Eugénio Lisboa tem a simplicidade de um verdadeiro homem. Discreto e afável, apresenta-se como um dos nossos, quando está entre nós.
Homem inteiro, sabe dar à vida a marca de um génio, feita de muito labor e de uma lúcida recusa pela vã glória.
Brilhante e activo, continua a escrever incessantemente. Tem no prelo dois livros e outros em plena laboração.
Ao longo dos anos e a par da sua actividade literária, foi desempenhando algumas funções de relevo e de grande utilidade pública e cultural. Assumiu-as sempre, com forte sentido de rigor e de exigência. Foi no exercício de uma dessas actividades, que tive o prazer de o conhecer pessoalmente, embora o seu nome, no mundo das Letras, me fosse familiar desde há longos anos. Era, então, o Presidente da Comissão Nacional da UNESCO.
Hoje, vou recuar a outra fase da sua vida: ao tempo do exercício da diplomacia cultural, como Conselheiro Cultural, na Embaixada de Portugal, em Londres. Fê-lo durante dezassete intensos e produtivos anos. Iniciou essa actividade há quarenta anos.
Não sei como poderei homenagear este homem maior da nossa cultura. Sei que tem em mim uma fervorosa admiradora , uma renitente leitora que pretende, neste dia , saudá-lo com profunda felicitação e sempiterno apreço.
Quando um escritor atinge o patamar da intemporalidade, não necessita de palavras de apresentação. Bastam os seus livros, a sua obra para falar mais alto do que qualquer outra voz. Eugénio Lisboa tem uma voz única.
Ouçamo-la, neste brilhante e interessante registo:
Londres - O Começo
“ A metade do ano de 1978, que me coube em sorte, visto que cheguei a Londres já no fim de Maio, foi razoavelmente ocupada com trabalho. O lugar de conselheiro cultural, numa Embaixada, pode, como muitos outros, ser encarado – e, às vezes, é – como uma sinecura, mas pode também ser levado a sério. Neste último caso, torna-se um lugar extremamente trabalhoso e até invasor. Tem duas componentes: uma, reactiva (respostas a perguntas, inquéritos, pedidos de apoio de toda a ordem, etc.), outra, de iniciativa (promoção activa da cultura, neste caso, portuguesa: concertos, conferências, colóquios, exposições, edição de livros portugueses em inglês, apoio a leitorados, etc.) Nunca fui de me sentar a uma secretária, à espera de que o tempo passasse. Sempre me pareceu que a melhor maneira de se estar num lugar é estar ocupado, nele, e, sendo possível, formatá-lo a meu modo, isto é, em vez de aguardar instruções, dá-las eu a mim próprio. De resto, julgo que a própria senioridade do lugar pressupõe isso. O meu colega Rui Knopfli, por várias vezes, me disse, com alguma amistosa inveja: “Você construiu o seu próprio trabalho e é um mundo aparte… Não dá cavaco a ninguém!” Respondi-lhe: “Não é bem assim: eu informo minuciosamente acerca de tudo quanto faço. O que não peço é licença para o fazer… Faço e só falo disso quando já está feito…” Não era gabarolice – era mesmo assim. Como não endividava ninguém e arranjava maneira de obter financiamentos, fora do Estado, não me doía a consciência por ir fazendo, com muita autonomia. De resto, sempre que uma universidade me convidava para uma conferência, um colóquio, um seminário, fui invariavelmente à minha custa (uma única vez, em dezassete anos, submeti o impresso das despesas para fins de reembolso, e bem me arrependi: pagaram-me mais do que aquilo que pedi e verifiquei que é um verdadeiro inferno tentar devolver ao Estado aquilo que nos deu indevidamente…) Ao longo da vida, sempre trabalhei muito, mas nunca fui um fanático pelo trabalho. Dizem que o tubarão, se pára de se mover, morre. Há quem morra, se deixar de trabalhar: não é o meu caso, até porque, se deixar de trabalhar de uma maneira, arranjo maneira de trabalhar de outra – que até, eventualmente, me dê mais prazer. Em qualquer dos casos, nunca andei doentiamente nostálgico dos trabalhos que não pude fazer e talvez me tivessem sido mais gratos do que aqueles que tive que fazer (tive alguma pena de não ter tido mais tempo para escrever ou ensinar, mas o que fiz, nestas áreas deu-me grande satisfação e isso ninguém mo tira…) Em qualquer dos casos, esta parece-me uma boa divisa: em vez de procurarmos, a todo o custo, um trabalho que nos dê prazer, inventemos uma maneira de ter prazer com o trabalho que nos coube em sorte. Mesmo em tarefas aparentemente pouco interessantes, se pode congeminar maneiras de, inovando-as, acrescentando-as, as tornar menos cinzentas. As atitudes perante o trabalho são muito diversas, consoante o temperamento dos indivíduos. Há quem tenha nascido para o lazer e para os jogos inocentes, como o escritor americano, de origem arménia, William Saroyan. O próprio Abraham Lincoln confessava: “My father taught me to work, but not to love it. I never did like to work, and I don’t deny it. I would rather read, tell stories, crack jokes, talk, laugh – anything but work.” O romancista e ensaísta inglês Aldous Huxley, que terá feito a sua “travessia de deserto”, mas que anda de novo “por aí”, pertencia à mesma paróquia em que oficiava Lincoln: “Like every man of sense and good feeling, I abominate work.” E acrescentava: “They intoxicate themselves with work so they won’t see how they really are.”
O meu pai pertencia bastante a esta categoria de seres tão intoxicados com o trabalho, que não conseguiam respirar fora dele. Quando se reformou, foi uma tragédia: “salvou-se”, literalmente, afundando-se numa leitura obsessiva, imparável de Camilos, Simenons, Maughams, Domingos Monteiros e poucos mais, de que vinha abastecer-se à minha biblioteca: quando chegava ao fim, recomeçava. Camus pertencia também a esta categoria: “Sem trabalho, a vida apodrece”, dizia. Mas, para ele, o trabalho não era tarefa nem rotina. Thoreau era selectivo: “It is not enough to be busy… the question is: what are we busy about?” Seja como for, mal aterrei na Embaixada, trabalho não me faltou: o que se me deparou e o que inventei. Ele era um infindável fluxo de cartas de apoio à candidatura de portugueses e portuguesas que queriam frequentar os cursos mais diversos: enfermagem, línguas, alimentação, artes domésticas, em politécnicas e universidades. Ele eram recomendações às universidades inglesas, no sentido de aceitarem os graus obtidos nas escolas portuguesas, como equivalentes aos graus ingleses requeridos para admissão naquelas universidades. Ele eram respostas a perguntas de todos os formatos, sobre os mais diversos aspectos da vida e da cultura portuguesa. Se queres saber, pergunta – era o moto saudável, mas cansativo, dos súbditos de Sua Majestade. As Embaixadas eram, como já disse, o alvo favorito do tiroteio. Rudyard Kipling, o fabuloso autor de O Livro da Selva e dos Simples Contos das Colinas, dizia, muito ao gosto inglês: “I keep six honest serving men / They taught me all I know: / Their names are What and Why and When / And how and Where and Who.” Era com estes prestáveis “serviçais” que o cidadão inglês se municiava para nos bombardear, diariamente, pelo telefone, por carta ou em visita pessoal: com os O quê, Porquê, Quando, Como, Onde e Quem, relativos à vida e cultura portuguesas. Munido de memória, dicionários, enciclopédias, manuais, monografias, guias, vademecums, prospectos, revistas e amigos sábios, em Lisboa e mesmo em Londres, eu fazia questão de não deixar nenhuma carta sem resposta: aos quês, porquês, quandos, comos, ondes, e quens, eu respondia com toda a artilharia ao meu alcance. E, quanto mais respondia, mais perguntavam: como se o responder alimentasse a fome de perguntar. A certa altura, dava para pedir misericórdia…
Mas a minha actividade não envolvia apenas informar os britânicos. Cumpria-me, também, assim o entendia eu, informar os portugueses, em Portugal. Por isso, enviei, durante o ano de 1978, informações sobre: cursos [na Inglaterra] para consultores de alunos de cursos superiores, cursos do “British Council” sobre “Tecnologia rural e a mulher” e “Cardiologia”, durante o ano de 1978, cursos de especial interesse para estudantes estrangeiros em Inglaterra e uma informação sobre “As Mulheres e o Desporto”.
Eugénio Lisboa, in” Acta Est Fabula, Memórias –IV – Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo. Londres. (1976- 1995), Editora Opera Omnia, Outubro de 2014, pp.158,159,160, 161
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