"O mito (ou a fábula) é, em Aristóteles, a alma da tragédia grega. Trata-se, segundo ele, da imitação de personagens que agem, quer dizer, o mito é sinónimos em termos de arte poética, de acção. Entre os seis elementos que constituem para Aristóteles a tragédia o mito é o mais importante deles. O texto poético pode existir sem o espectáculo cénico, o que secundariza logo à partida os três elementos externos da tragédia, mas nunca sem o mito, que contém já carácter e pensamento, os outros dois elementos internos do género. O mito é que proporciona, assim, a unidade do drama, uma unidade que nada tem, porém, a ver com a célebre unidade de lugar, de tempo e de acção que Hegel, no livro dedicado à poesia da Estética [trad. port., Álvaro Ribeiro], diz ser uma invenção dos franceses.Ainda no seu tratado sobre a poesia, Aristóteles distingue duas formas de urdir um mito ou trama de factos. A primeira, a mais poética, inventando-o por arte ou imaginação, e a segunda recorrendo à História ou às lendas heróicas tradicionais, que tratavam de acontecimentos especiais no seio de famfiias reais gregas (l454 a 9). A tragédia, neste segundo caso, é mais História transformada em poesia que imitação da Natureza. De qualquer modo, a imitação da história pela tragédia, processo comum na criação dos mitos entre os poetas gregos, não é reprodução mecânica nem cópia servil, mas antes reelaboração e aperfeiçoamento, progresso assinalado pelo efeito purgativo dramático, a catarse (v.), que funciona como forma de resolver a dificuldade insolúvel da História.
Recordemos que Almeida Garrett, roubando também à História o tema ou o mito do seu grande drama, o Frei Luiz de Sousa, não deixou de esclarecer na “Memória ao Conservatório Real”, “Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto…”, quer dizer, a História era para ele um pretexto que a poesia depois reelaborava e sublimava.
Em termos antropológicos, o mito remete para uma narrativa fabulosa, que parece escapar ao pensamento racional, seja ele teológico ou científico, mas cuja capacidade compreensiva do mundo -que conviria distinguir da explicativa- foi recentemente posta em relevo por Carl-Gustav Jung e Mircea Eliade, no seguimento dos trabalhos de Schelling (que parece ter sido o primeiro dos modernos a compreender, com dinâmica simpatia espiritual, a natureza pretérita do mito) e J. G. Frazer. Nesta acepção, o mito supõe, como adiantou José Marinho, um silêncio ou uma outra palavra, aquela mesma que é capaz de dizer a presença do irracional no seio da razão ou do logos, que é também relação com o que está imóvel no meio do tempo. Daí a ideia, também grata a Marinho, de que o mito (Osíris, Prometeu, Adão e Eva) lembra, por meio de uma memória do ímemoríal, a cisão que é a origem do tempo, o que não quer dizer que o mito esteja dentro da tradição, pois esta é já uma relação móvel. Segundo Eudoro de Sousa, o mito seria antes de mais a intriga de um drama ritualístíco em que se representa a origem. O drama é o sacrifício, em que a morte de deus oferece a vida ao mundo. Assim, para este autor, um dos que que teve como poucos o agudo sentido da origem, a mitologia não é a biografia dos deuses mas antes a sua thanatografla; mais do que da criação do mundo, do originado, o mito fala-nos da morte dos deuses, na origem, antes da criação. Mais do que cosmofania, o mito parece ser neste autor teocriptia. Se a História fala do originado, o mito é a linguagem adequada para falar da origem e do que nesta ainda não tem devir.
As dificuldades de dizer o mito parecem fáceis de perceber por aqueles que sabem que nem a teologia nem a ciência gostam dos mitos. Sujeito, desde há muito, à pressão de uma mentalidade positiva, quando não nacionalista, o mito para ganhar alguma popularidade, e mesmo assim no reduto acantonado da poesia ou da sua crítica, teve, durante muitos anos, de se degradar ou vulgarizar debaixo das roupagens muito mais inofensivas da alegoria, contribuindo, desse modo, para o processo, secular ou não, da desmistificação. Barthes, por exemplo, explicou alegorias e sinais, se não lugares-comuns, mas não mitos, que são inexplícáveis.
Vítima de uma lógica explicativa, o mito acabou por se volver simples mitologia, ou seja, ciência do mito, na maior parte dos casos ciência que perdeu o sentido agudo da imagética e da simbólica primordiais, ficando, quase sempre, reduzida a um acervo de histórias exemplares de um pensamento perjurativamento primitivo, quando não, como parece acontecer no Barthes semiólogo, de um simples processo de desnústificação.
Homens como Jung, Eliade ou Bachelard (a quem se pode acrescentar, entre nós, um Eudoro de Sousa), não são, pela funda simpatia espiritual com que interpretaram e falaram do mito, compreendendo em primeiro lugar a alteridade cultural que ele pressupõe, simples mitólogos. Todo o seu trabalho supõe uma empatia com o mundo mítico e a consciência acerada de que o logos ocidental, nas suas várias versões, é inadequado à compreensão dos mitos.
O mito vulgarizou-se como alegoria, mas sobreviveu, se bem que de forma rara e em condições de generalisada incompreensão, em poetas isolados, dotados de forte e pessoal criatividade, de que o melhor exemplo entre nós parece ser Teixeira de Pascoaes, que não só retomou e reinterpretou, no seguimento aliás de Guerra Junqueiro, mitos da origem, tais o de Prometeu e o do Paraíso Perdido, como se encarregou ele próprio de fabricar outros, tais o de Marános ou de Eleonor.
O mito, com tudo aquilo que tem de apelo a uma mentalidade simbólica, acabou por ser adoptado, no campo das significações literárias, com largo proveito, por investigadores e mitocríticos como Gilbert Durand, Antônio Quadros e Y. K. Centeno."António Cândido Franco, in E-Dicionário de Termos literários de Carlos Ceia
Recordemos que Almeida Garrett, roubando também à História o tema ou o mito do seu grande drama, o Frei Luiz de Sousa, não deixou de esclarecer na “Memória ao Conservatório Real”, “Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto…”, quer dizer, a História era para ele um pretexto que a poesia depois reelaborava e sublimava.
Em termos antropológicos, o mito remete para uma narrativa fabulosa, que parece escapar ao pensamento racional, seja ele teológico ou científico, mas cuja capacidade compreensiva do mundo -que conviria distinguir da explicativa- foi recentemente posta em relevo por Carl-Gustav Jung e Mircea Eliade, no seguimento dos trabalhos de Schelling (que parece ter sido o primeiro dos modernos a compreender, com dinâmica simpatia espiritual, a natureza pretérita do mito) e J. G. Frazer. Nesta acepção, o mito supõe, como adiantou José Marinho, um silêncio ou uma outra palavra, aquela mesma que é capaz de dizer a presença do irracional no seio da razão ou do logos, que é também relação com o que está imóvel no meio do tempo. Daí a ideia, também grata a Marinho, de que o mito (Osíris, Prometeu, Adão e Eva) lembra, por meio de uma memória do ímemoríal, a cisão que é a origem do tempo, o que não quer dizer que o mito esteja dentro da tradição, pois esta é já uma relação móvel. Segundo Eudoro de Sousa, o mito seria antes de mais a intriga de um drama ritualístíco em que se representa a origem. O drama é o sacrifício, em que a morte de deus oferece a vida ao mundo. Assim, para este autor, um dos que que teve como poucos o agudo sentido da origem, a mitologia não é a biografia dos deuses mas antes a sua thanatografla; mais do que da criação do mundo, do originado, o mito fala-nos da morte dos deuses, na origem, antes da criação. Mais do que cosmofania, o mito parece ser neste autor teocriptia. Se a História fala do originado, o mito é a linguagem adequada para falar da origem e do que nesta ainda não tem devir.
As dificuldades de dizer o mito parecem fáceis de perceber por aqueles que sabem que nem a teologia nem a ciência gostam dos mitos. Sujeito, desde há muito, à pressão de uma mentalidade positiva, quando não nacionalista, o mito para ganhar alguma popularidade, e mesmo assim no reduto acantonado da poesia ou da sua crítica, teve, durante muitos anos, de se degradar ou vulgarizar debaixo das roupagens muito mais inofensivas da alegoria, contribuindo, desse modo, para o processo, secular ou não, da desmistificação. Barthes, por exemplo, explicou alegorias e sinais, se não lugares-comuns, mas não mitos, que são inexplícáveis.
Vítima de uma lógica explicativa, o mito acabou por se volver simples mitologia, ou seja, ciência do mito, na maior parte dos casos ciência que perdeu o sentido agudo da imagética e da simbólica primordiais, ficando, quase sempre, reduzida a um acervo de histórias exemplares de um pensamento perjurativamento primitivo, quando não, como parece acontecer no Barthes semiólogo, de um simples processo de desnústificação.
Homens como Jung, Eliade ou Bachelard (a quem se pode acrescentar, entre nós, um Eudoro de Sousa), não são, pela funda simpatia espiritual com que interpretaram e falaram do mito, compreendendo em primeiro lugar a alteridade cultural que ele pressupõe, simples mitólogos. Todo o seu trabalho supõe uma empatia com o mundo mítico e a consciência acerada de que o logos ocidental, nas suas várias versões, é inadequado à compreensão dos mitos.
O mito vulgarizou-se como alegoria, mas sobreviveu, se bem que de forma rara e em condições de generalisada incompreensão, em poetas isolados, dotados de forte e pessoal criatividade, de que o melhor exemplo entre nós parece ser Teixeira de Pascoaes, que não só retomou e reinterpretou, no seguimento aliás de Guerra Junqueiro, mitos da origem, tais o de Prometeu e o do Paraíso Perdido, como se encarregou ele próprio de fabricar outros, tais o de Marános ou de Eleonor.
O mito, com tudo aquilo que tem de apelo a uma mentalidade simbólica, acabou por ser adoptado, no campo das significações literárias, com largo proveito, por investigadores e mitocríticos como Gilbert Durand, Antônio Quadros e Y. K. Centeno."António Cândido Franco, in E-Dicionário de Termos literários de Carlos Ceia
{bibliografia}
Afonso Botelho, “Mitos do Regresso à Origem”, ín Saudade, Regresso à Origem, 1997; Antônio Quadros, Estruturas Simbólicas do Imagínário na Literatura Portuguesa, 1992; Aristóteles, Poética [Tradução, Prefácio, Introdução, Comentário e Apendices de Eudoro de Sousa, (2ª ed., revista e acrescentada)], 1986; B. Slote (ed.), Myth and Symbol, 1963; Eduardo Lourenço, “Poética Mítíca”; in Tempo e Poesia, 1987; “Da Crítica como Metáfora à Procura do Texto”, in O Canto do Signo, 1993; E. Cassirer, Sprache und Mythos, 1952; Eudoro de Sousa, Dionisos em Creta e Outros Ensaios, 1973;Hístória e Mito, 1981; Mitologia, 1984; Femando Bastos, Mito e Filosofia – Eudoro de Sousa e a Complementaridade do Horizonte, 1992; Francisco Soares, Fábula da Captação do Elemento Desvairado, 1995; Friedrich W. Schelling, Philosophie der Mythologie, 1857; Gilbert Durand, Les Structures antropologiques de l’imaginaire, 1969; James Frazer, The Golden Bough, 12 vols., 1890-1936; Maria Leonor Machado de Sousa, Mito e Cilação Literária, 1985; Mircea Eliade, Mythes, rêves et symboles, 1957; Northrop Frye, Anatomy of Criticism, 1957; Robert Chase, The Quest of Myth, 1949; R. Barthes, Mitologias, 1957 [trad. port. José-Augusto Seabra, 1972]; R. Y. Hathorne, Tragedy, Myth and Mystery, 1962; Victor Jabouille, “Mito Clássico e Literatura Portuguesa”, in Actas do Colóquio sobre o Ensino do Latim [Lisboa], 1987, Walter Burket, Mito e Mitologia, [Lisboa, 1991]; Y. K. Centeno, Cinco Aproximações: Peter Weiss, A. Ramos Rosa, Alquimia e Misticismo, Fernando Pessoa, Hennann Hesse, 1975.
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