quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Bússola

O orientalismo da nossa alma e história

  Quanto a nós, permanecemos viajantes, fechados no nosso eu, susceptíveis, quem sabe, de nos transformarmos pelo contacto com a alteridade, mas não certamente por fazermos dela uma experiência profunda.
                            Mathias Enard, Bússola

Por Vamberto Freitas
Bússola, este brilhante e gigantesco mosaico de história, política, orientalismo, amor, violência, fantasia e arte pura, desde o século XIX até aos nossos dias, é a primeira ficção que leio do autor francês Mathias Enard. Ao ler este e outros grandes romances de tempos recentes lembro-me sempre da pouca visão literária e pobreza analítica por parte de alguns quando olhavam e olham o que lhes parecia ser o estado da cultura e literatura ocidentais em geral, e não só, quando uns e outros pronunciavam a morte do romance, a sua pessoalíssima exaustão assumida como condição universalizada de todos os outros, ou então a sua arrogância em pensarem-se os últimos grandes escritores possíveis. Mathias Enard não está só. O romance como género literário da contemporaneidade em nada fica atrás das grandes e marcantes narrativas do realismo desde as suas origens oitocentistas, retomou a sua grandeza temática, tendo como fundo a sociedade em que se insere, ou crescentemente zonas inteiras do globo com uma história necessariamente interligada. A osmose artística entre civilizações sempre se manifestou de todas as maneiras para quem sabe ver para além do discurso enviesado dos poderes, de ontem e de hoje, ou dos que entregaram os seus talentos e saberes de vária natureza ao serviço desses comerciantes quase sempre do roubo e da morte. Bússola não é só um grande romance do nosso tempo, todo ele construído por uma linguagem que combina uma avassaladora erudição com a fala vivíssima dos seus personagens principais. O seu desdobrado, múltiplo quotidiano reinventado leva-nos por territórios próximos ou mais afastados, marcado pela banalidade que é desde sempre a memória e o desejo de qualquer ser humano, a busca de ou indiferença perante o amor, o medo da morte que nos avisa constantemente a todos, a ambição dando lugar à solidão num quarto fechado ou na imensidão de um deserto ou cidade caída e esquecida. O narrador de Bússola, na primeira pessoa, chama-se Franz Ritter, austríaco de mãe francesa, musicólogo e professor numa universidade em Viena, passando os seus dias e noites num pequeno apartamento atulhado de livros, pautas musicais e monografias, dele e dos seus colegas, enfrentando angustiadamente uma doença supostamente terminal não identificada, e durante uma noite de insónia relembra todo o seu passado como orientalista relutante, e particularmente a mulher que ama, uma judia parisiense, Sarah, que está uma vez mais a perseguir os seus estudos e descobertas filosóficas no Oriente, depois de se dedicar ao estudo profundo do tratamento do Médio Oriente nas literaturas canónicas ou marginais do Ocidente. Franz faz-me lembrar aqui o “homem subterrâneo” de Dostoiévski numa crise existencial que o leva à ira desconstrutivista de si próprio, da carreira universitária, e sobretudo dos colegas e antecessores a partir do século XIX, uma vez mais, que estudaram obcecadamente a cultura e artes dos povos árabes e persas, e que inevitavelmente os europeus desde Beethoven e todos os grandes nomes antes e depois do seu tempo aproveitariam para as suas próprias produções, na música, na literatura e nas artes plásticas. Fernando Pessoa – e muita história portuguesa – está aqui também nas linhas mestras de Mathias Enard, o outro em nós, nós no outro, contextualizando o afastamento presente na luta hiper-violenta entre nós e eles, O Ocidente a pagar agora com os mesmos
ferros, reais e simbólicos, com que havia olhado, retalhado e colonizado todos esses povos.
As duas palavras-chave em Bússola são orientalismo e alteridade. A grande arte literária ou é uma projecção intimista do seu narrador, ou então será muito pouco, um escrito banal. Franz Ritter está frente a frente não só ao seu possível fim, como projecta a sua própria pessoa nos acontecimentos que abalam o nosso mundo, uma Europa que continua a negar o seu profundo relacionamento com o Médio Oriente, e um Médio Oriente enraivecido, sobressaindo a imagem de jovens idos de cá para lá, com um facão na mão e segurando pelo pescoço os seus prisioneiros prestes a serem degolados vagarosamente e à nossa frente. Franz leva-nos nas suas próprias viagens a cidades que agora estão totalmente destruídas, a morte à solta em cada um dos seus recantos, Aleppo e Palmira na Síria relembradas na sua majestade artística e na sua civilidade, o ponto outrora de encontro entre estudiosos e amantes europeus em busca de saber e aventura. O rol de nomes dessas personalidades, das suas grandes obras literárias ou em todas as outras artes é deveras avassalador para o leitor, mas a prosa de Mathia Enard é de tal ordem e viveza que nos transporta de página a página, de cena a cena, de personagem a personagem como num sonho de choro, medo e riso, depois tudo lembrado integralmente quando atravessamos o espelho fantástico em que vimos esse outro e, naturalmente, a nossa própria imagem. O narrador Franz Ritter está aqui quase num delírio de saudade pela mulher que diz amar, uma saudade do que nunca foi nem aconteceu a maior parte do tempo, e que está sempre a oriente em busca de si própria, a intimidade de um e outro contida apenas nessa troca esporádica de palavras, os seus estados de alma apenas insinuados num ou noutro passo das suas cartas, entre notícias de andanças e trabalhos em curso. Aliás, a palavra “saudade” entra proeminentemente na sua prosa, os portugueses e a sua história no Oriente um chamamento quase constante, assim como o orientalismo de Fernando Pessoa, particularmente através de Álvaro de Campos e do seu Opiário, “Porque há um Oriente para lá do Oriente, vive no sonho dos viajantes de outrora, na fantasia da vida colonial, no sonho cosmopolita e burguês de ancoradouros e barcos a vapor”. O melhor e o pior de nós, quanto ao nosso próprio orientalismo, está aqui presente, Camões por um lado, Mouzinho de Albuquerque no outro extremo. A certa altura Franz diz, contra certos etimologistas, que “Eu pelo meu lado, pensava que a saudade, como a palavra indica, é um sentimento também árabe e iraniano, e que os jovens Pasdars da ilha, por muito que não sejam originários de Shiraz ou de Teerão e não vão a casa todas as noites, devem recitar poemas à volta de uma fogueira para enganar a tristeza – não, claro, versos de Camões como Sarah empoleirada no canhão enferrujado”. Do Levante a Tibete, acompanhamos, por entre a memória e o desejo de Franz na sua fantasia amorosa com a inefável Sarah, as viagens sem fim de uma Europa a tentar desvendar os mistérios de povos que um dia fizeram as lusitanas naus navegar e chocalhar sabres em cruzadas de conquistas reais e fantasmagóricas. Para além de tudo o mais que um grande romance, como Bússola, nos oferece em estética e abrangência temática, é como se entendêssemos pela primeira vez ou nos fosse recordado que o mundo actual tem as suas raízes dos dois lados da fronteira, essa que pensamos nos separar, quando juntos sempre estivemos. O autor disse numa entrevista recente aqui em Portugal que precisamos da literatura para vermos para além da violência nas guerras do Médio Oriente que assolam o nosso presente, e nos ameaçam a todos. Que bom ouvir de um mestre que, afinal, a literatura serve ainda para muito mais do que alimentar certas “teorias” académicas e outros discursos inconsequentes.
A questão do orientalismo nos estudos e sobretudo nas artes ocidentais vem de longe, essencialmente a criação de imagens do outro, a maior das vezes num acto de aberta inferiorização, ou então ao serviço dos vários poderes europeus, e depois norte-americanos, que financiaram e financiam os mais diversos institutos de investigação histórica e cultural desses povos, muitas vezes por académicos que nem sequer as suas línguas falam ou entendem. Bússola, por outro lado, apresenta-nos ao melhor dessas civilizações a oriente – a sua literatura e artes várias, particularmente a música. Edward Said, o falecido escritor palestiniano, que foi professor de literatura na Columbia University, em Nova Iorque, e um distinto assessor de Yasser Arafat, foi também, sem qualquer dúvida, o intelectual que mais colocou em causa, e definitivamente, tanto esses estudos como a representação dos povos fora da Europa nas diversas literaturas continentais. Num passo de grande humor e empatia meio escondida, Franz Ritter trá-lo ao baile, como quem convoca um djinn d’As Mil E Uma Noites.
“… O Lobo apareceu – diz Franz, deliciado – no deserto gelado no meio do rebanho: Edward Said. Era como invocar o Diabo num convento de carmelitas… Bilger, horrorizado com a ideia de poder ser associado a qualquer orientalismo, começou imediatamente uma autocrítica envergonhada, renegando pai e mãe; François-Marie e Julie tinham uma posição mais matizada, reconhecendo embora que Said havia colocado uma questão incendiária mas pertinente, a das relações entre saber e poder no Oriente – eu não tinha opinião, e continuo, julgo, sem a ter; Edward Said era um excelente pianista, escreveu sobre música e criou com Daniel Barenboim a orquestra West-ostlicher Divan gerida por uma fundação com sede na Andaluzia, onde se pugna por preservar a beleza na partilha e na diversidade”.
O poder das ideias e da arte. Literatura contra a violência, a literatura como partilha entre civilizações, a representação sabedora da nossa própria alteridade, ou a busca desse outro em nós. Afinal, a questão da identidade continua a fornecer às grandes obras o seu ponto de partida e de chegada. Bússola mereceu o grande Prémio Goncourt. Merece agora a leitura de quem não tem medo dos mil e um espelhos que reflectem todo o nosso ser, de quem na arte ainda alimenta a mente e a alma."
Vamberto Freitas, em recensão crítica na  coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental de 30 de Setembro, 2016

Mathias Enard, Bússola (tradução de Ana Cristina Leonardo), Lisboa, D. Quixote, 2016. 

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