Quanto a nós, permanecemos viajantes, fechados no nosso eu, susceptíveis, quem sabe, de nos transformarmos pelo contacto com a alteridade, mas não certamente por fazermos dela uma experiência profunda.
Mathias Enard, Bússola
Por Vamberto Freitas
Bússola, este brilhante e gigantesco mosaico de história, política, orientalismo, amor, violência, fantasia e arte pura, desde o século XIX até aos nossos dias, é a primeira ficção que leio do autor francês Mathias Enard. Ao ler este e outros grandes romances de tempos recentes lembro-me sempre da pouca visão literária e pobreza analítica por parte de alguns quando olhavam e olham o que lhes parecia ser o estado da cultura e literatura ocidentais em geral, e não só, quando uns e outros pronunciavam a morte do romance, a sua pessoalíssima exaustão assumida como condição universalizada de todos os outros, ou então a sua arrogância em pensarem-se os últimos grandes escritores possíveis. Mathias Enard não está só. O romance como género literário da contemporaneidade em nada fica atrás das grandes e marcantes narrativas do realismo desde as suas origens oitocentistas, retomou a sua grandeza temática, tendo como fundo a sociedade em que se insere, ou crescentemente zonas inteiras do globo com uma história necessariamente interligada. A osmose artística entre civilizações sempre se manifestou de todas as maneiras para quem sabe ver para além do discurso enviesado dos poderes, de ontem e de hoje, ou dos que entregaram os seus talentos e saberes de vária natureza ao serviço desses comerciantes quase sempre do roubo e da morte. Bússola não é só um grande romance do nosso tempo, todo ele construído por uma linguagem que combina uma avassaladora erudição com a fala vivíssima dos seus personagens principais. O seu desdobrado, múltiplo quotidiano reinventado leva-nos por territórios próximos ou mais afastados, marcado pela banalidade que é desde sempre a memória e o desejo de qualquer ser humano, a busca de ou indiferença perante o amor, o medo da morte que nos avisa constantemente a todos, a ambição dando lugar à solidão num quarto fechado ou na imensidão de um deserto ou cidade caída e esquecida. O narrador de Bússola, na primeira pessoa, chama-se Franz Ritter, austríaco de mãe francesa, musicólogo e professor numa universidade em Viena, passando os seus dias e noites num pequeno apartamento atulhado de livros, pautas musicais e monografias, dele e dos seus colegas, enfrentando angustiadamente uma doença supostamente terminal não identificada, e durante uma noite de insónia relembra todo o seu passado como orientalista relutante, e particularmente a mulher que ama, uma judia parisiense, Sarah, que está uma vez mais a perseguir os seus estudos e descobertas filosóficas no Oriente, depois de se dedicar ao estudo profundo do tratamento do Médio Oriente nas literaturas canónicas ou marginais do Ocidente. Franz faz-me lembrar aqui o “homem subterrâneo” de Dostoiévski numa crise existencial que o leva à ira desconstrutivista de si próprio, da carreira universitária, e sobretudo dos colegas e antecessores a partir do século XIX, uma vez mais, que estudaram obcecadamente a cultura e artes dos povos árabes e persas, e que inevitavelmente os europeus desde Beethoven e todos os grandes nomes antes e depois do seu tempo aproveitariam para as suas próprias produções, na música, na literatura e nas artes plásticas. Fernando Pessoa – e muita história portuguesa – está aqui também nas linhas mestras de Mathias Enard, o outro em nós, nós no outro, contextualizando o afastamento presente na luta hiper-violenta entre nós e eles, O Ocidente a pagar agora com os mesmos
ferros, reais e simbólicos, com que havia olhado, retalhado e colonizado todos esses povos.
As duas palavras-chave em Bússola são orientalismo e alteridade. A grande arte literária ou é uma projecção intimista do seu narrador, ou então será muito pouco, um escrito banal. Franz Ritter está frente a frente não só ao seu possível fim, como projecta a sua própria pessoa nos acontecimentos que abalam o nosso mundo, uma Europa que continua a negar o seu profundo relacionamento com o Médio Oriente, e um Médio Oriente enraivecido, sobressaindo a imagem de jovens idos de cá para lá, com um facão na mão e segurando pelo pescoço os seus prisioneiros prestes a serem degolados vagarosamente e à nossa frente. Franz leva-nos nas suas próprias viagens a cidades que agora estão totalmente destruídas, a morte à solta em cada um dos seus recantos, Aleppo e Palmira na Síria relembradas na sua majestade artística e na sua civilidade, o ponto outrora de encontro entre estudiosos e amantes europeus em busca de saber e aventura. O rol de nomes dessas personalidades, das suas grandes obras literárias ou em todas as outras artes é deveras avassalador para o leitor, mas a prosa de Mathia Enard é de tal ordem e viveza que nos transporta de página a página, de cena a cena, de personagem a personagem como num sonho de choro, medo e riso, depois tudo lembrado integralmente quando atravessamos o espelho fantástico em que vimos esse outro e, naturalmente, a nossa própria imagem. O narrador Franz Ritter está aqui quase num delírio de saudade pela mulher que diz amar, uma saudade do que nunca foi nem aconteceu a maior parte do tempo, e que está sempre a oriente em busca de si própria, a intimidade de um e outro contida apenas nessa troca esporádica de palavras, os seus estados de alma apenas insinuados num ou noutro passo das suas cartas, entre notícias de andanças e trabalhos em curso. Aliás, a palavra “saudade” entra proeminentemente na sua prosa, os portugueses e a sua história no Oriente um chamamento quase constante, assim como o orientalismo de Fernando Pessoa, particularmente através de Álvaro de Campos e do seu Opiário, “Porque há um Oriente para lá do Oriente, vive no sonho dos viajantes de outrora, na fantasia da vida colonial, no sonho cosmopolita e burguês de ancoradouros e barcos a vapor”. O melhor e o pior de nós, quanto ao nosso próprio orientalismo, está aqui presente, Camões por um lado, Mouzinho de Albuquerque no outro extremo. A certa altura Franz diz, contra certos etimologistas, que “Eu pelo meu lado, pensava que a saudade, como a palavra indica, é um sentimento também árabe e iraniano, e que os jovens Pasdars da ilha, por muito que não sejam originários de Shiraz ou de Teerão e não vão a casa todas as noites, devem recitar poemas à volta de uma fogueira para enganar a tristeza – não, claro, versos de Camões como Sarah empoleirada no canhão enferrujado”. Do Levante a Tibete, acompanhamos, por entre a memória e o desejo de Franz na sua fantasia amorosa com a inefável Sarah, as viagens sem fim de uma Europa a tentar desvendar os mistérios de povos que um dia fizeram as lusitanas naus navegar e chocalhar sabres em cruzadas de conquistas reais e fantasmagóricas. Para além de tudo o mais que um grande romance, como Bússola, nos oferece em estética e abrangência temática, é como se entendêssemos pela primeira vez ou nos fosse recordado que o mundo actual tem as suas raízes dos dois lados da fronteira, essa que pensamos nos separar, quando juntos sempre estivemos. O autor disse numa entrevista recente aqui em Portugal que precisamos da literatura para vermos para além da violência nas guerras do Médio Oriente que assolam o nosso presente, e nos ameaçam a todos. Que bom ouvir de um mestre que, afinal, a literatura serve ainda para muito mais do que alimentar certas “teorias” académicas e outros discursos inconsequentes.
A questão do orientalismo nos estudos e sobretudo nas artes ocidentais vem de longe, essencialmente a criação de imagens do outro, a maior das vezes num acto de aberta inferiorização, ou então ao serviço dos vários poderes europeus, e depois norte-americanos, que financiaram e financiam os mais diversos institutos de investigação histórica e cultural desses povos, muitas vezes por académicos que nem sequer as suas línguas falam ou entendem. Bússola, por outro lado, apresenta-nos ao melhor dessas civilizações a oriente – a sua literatura e artes várias, particularmente a música. Edward Said, o falecido escritor palestiniano, que foi professor de literatura na Columbia University, em Nova Iorque, e um distinto assessor de Yasser Arafat, foi também, sem qualquer dúvida, o intelectual que mais colocou em causa, e definitivamente, tanto esses estudos como a representação dos povos fora da Europa nas diversas literaturas continentais. Num passo de grande humor e empatia meio escondida, Franz Ritter trá-lo ao baile, como quem convoca um djinn d’As Mil E Uma Noites.
“… O Lobo apareceu – diz Franz, deliciado – no deserto gelado no meio do rebanho: Edward Said. Era como invocar o Diabo num convento de carmelitas… Bilger, horrorizado com a ideia de poder ser associado a qualquer orientalismo, começou imediatamente uma autocrítica envergonhada, renegando pai e mãe; François-Marie e Julie tinham uma posição mais matizada, reconhecendo embora que Said havia colocado uma questão incendiária mas pertinente, a das relações entre saber e poder no Oriente – eu não tinha opinião, e continuo, julgo, sem a ter; Edward Said era um excelente pianista, escreveu sobre música e criou com Daniel Barenboim a orquestra West-ostlicher Divan gerida por uma fundação com sede na Andaluzia, onde se pugna por preservar a beleza na partilha e na diversidade”.
O poder das ideias e da arte. Literatura contra a violência, a literatura como partilha entre civilizações, a representação sabedora da nossa própria alteridade, ou a busca desse outro em nós. Afinal, a questão da identidade continua a fornecer às grandes obras o seu ponto de partida e de chegada. Bússola mereceu o grande Prémio Goncourt. Merece agora a leitura de quem não tem medo dos mil e um espelhos que reflectem todo o nosso ser, de quem na arte ainda alimenta a mente e a alma."
Vamberto Freitas, em recensão crítica na coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental de 30 de Setembro, 2016
Mathias Enard, Bússola (tradução de Ana Cristina Leonardo), Lisboa, D. Quixote, 2016.
Vamberto Freitas, em recensão crítica na coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental de 30 de Setembro, 2016
Mathias Enard, Bússola (tradução de Ana Cristina Leonardo), Lisboa, D. Quixote, 2016.
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