Por Adriano Moreira
“Quando falamos em ordem mundial, o conceito é apenas jurídico,
enumera a Carta da ONU e os diplomas complementares, e sobretudo as promessas
de paz que se seguiram, como de hábito, no fim da guerra de 1939-1945.
Esquecemos, numa data em que tantos homens tentavam esquecê-las, e que os
textos jurídicos não fizeram eles desaparecer as memórias, e a situação actual
aconselha a começar a meditação por tal circunstância. Lembremos de que a guerra
de 1914-1918, iniciada por um motivo banal que foi a morte de um príncipe,
culminou com a afirmação do princípio ético de Willson, segundo o qual a cada
nação deve corresponder um Estado. Não se lembrou da advertência do Lorde
Acton, que frequentemente cito, segundo o qual o Estado de regra precede a
Nação, e não é seguro que a Nação preceda o Estado. O princípio de Willson foi
acolhido com o pregado respeito pelo direito natural, mas teve uma consequência
política, que não esqueceu os interesses americanos, e foi o desaparecimento
dos impérios domésticos da Europa: os impérios Alemão, Austro-Húngaro, Russo,
Turco, estabilizados nas fronteiras de interesses depois de séculos de lutas.
No
fim da II Guerra Mundial, 1939--1945, de novo o princípio ético da
descolonização reafirmou a liberdade dos povos, agora abrangendo as áreas componentes
do império euromundista, partilhado por Holanda, França, Bélgica, Inglaterra,
Portugal, todas potências da frente marítima atlântica. Os custos humanos foram
brutais: a Holanda teve perdas severas na Indonésia; a França viu o seu
exército destruído no Vietname e envolveu-se em sacrifícios consideráveis na
Argélia, por ordem do ministro Mitterrand, porque a Argélia fora, era, e seria
sempre a França; a Inglaterra abandonou o império da Índia, não impedindo o
preço de uns 400 mil mortos na separação do Paquistão da União Indiana, e, pela
primeira vez, atirou com a toalha na Palestina, com o brutal sacrifício humano
dos palestinos que dura até hoje; a Bélgica foi humilhada no Congo e não
impediu a guerra do Catanga; finalmente Portugal, teve a guerra colonial de 13
anos, que as Forças Armadas iniciaram para dar tempo ao governo para encontrar
soluções políticas, dando o esforço por findo, sem resultados pacíficos, em
1974.
Mas
assim como o império foi euromundista, as consequências para a Europa também
foram globais, embora desproporcionalmente distribuídas. O grande impulso
colonial do século XIX, que afirmou o domínio ocidental do mundo, considerado
uma loucura por Guizot, não deixou de invocar grandes princípios éticos: A
evangelização portuguesa, as luzes francesas, o peso da civilização assumido
pelos ingleses. Mas de facto com interesses económicos muito claramente
expressos: posse das matérias-primas, domínio dos mercados dos produtos
acabados, ditadura do preço do trabalho, foram apoios do enriquecimento da
Europa que, por outro lado, em nome dos proclamados princípios éticos, se
considerou "A luz do mundo". Nenhum dos novos Estados guardara da
antiga submissão colonial qualquer prática democrática, sobretudo a de divisão
de poderes; não se tratou, em regra, de libertar nações, mas sim do grito que
em Moçambique ficou célebre - deixem passar o meu povo -; acrescia que as
fronteiras existentes eram artificiais porque herdadas do regime colonial, e
não da própria história local; depois, falando pela primeira vez em liberdade à
comunidade internacional, os textos da Carta sofriam variadíssimas
interpretações, por exemplo no que toca à definição de família, aos direitos
das mulheres, ao direito de propriedade, e assim por diante. E sobretudo,
também aqui, como noutros domínios, o conflito entre as leis escritas e as
memórias não desapareceram.
No
ano da graça de 2016, entramos num século sem bússola. Enquanto a luta pelo
domínio económico de desenvolve, com a crise global económica e financeira a
servir de fundo, com a Europa rica a distinguir-se da Europa pobre, com as
guerras atípicas a multiplicarem-se no corredor do Cabo ao Cairo, com os erros
da intervenção americana no Iraque e da Rússia na Ucrânia, a circunstância
europeia, com a área mediterrânica no turbilhão causado pela democracia
inspirada no Corão, a memória que não desapareceu em Berlim, que não morreu na
Rússia de Putin, que está viva nos EUA, veio inspirar o mais brutal dos
desafios que se traduziu na capacidade de o fraco vencer o forte. Foi a eclosão
do terrorismo, cuja primeira manifestação demolidora foi o derrube das Torres
Gémeas de Nova Iorque, por aviões tripulados por fanáticos muçulmanos, e que
infligiram um golpe de importância nunca vista ao maior poder da terra.
Enquanto o Ocidente, incluindo a Europa, presta vassalagem ao credo do mercado,
o terrorismo da Al-Qaeda definiu um conceito estratégico em que incluiu valores
religiosos, o mais determinante valor das gentes. Como se caracteriza o
terrorismo? No meu parecer, o objectivo estratégico do terrorismo é cortar a
relação de confiança entre a sociedade civil e o Estado, mostrando este incapaz
da protecção da sociedade a que está obrigado. Nos EUA aconteceu ao mesmo tempo
que os agressores transformaram em sagrado o terreno onde caíram em nome do
Profeta, e os americanos sentiram sagrado o lugar pelo sacrifício de tantas
vítimas. Mas o precedente mais ameaçador foi o facto de os ocidentais,
sobretudo europeus, terem confundido o cosmopolitismo com o multiculturalismo.”Adriano Moreira, artigo de opinião publicado no DN de 9.03.2016
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