Como morrer?
Por François Mitterand
"Vivemos um mundo aterrado por esta interrogação, e que lhe vira as costas. Houve, antes da nossa, civilizações que encaravam a morte de frente. Traçavam para a comunidade e para cada um o caminho de passagem . Conferiam à conclusão do destino a sua riqueza e o seu sentido. Talvez que nunca a relação com a morte tenha sido tão pobre como nestes tempos de aridez espiritual em que os homens, na pressa de existir, parecem sofismar o mistério. Ignoram que , desse modo, secam uma fonte essencial do gosto de viver.
Este livro é uma lição de vida. A luz que dele emana é mais intensa que muitos tratados de sabedoria. pois, mais do que uma reflexão, apresenta um testemunho da mais profunda das experiências humanas. O seu poder nasce dos factos e da simplicidade de representação. " Representação" é, neste caso, a palavra certa. " tornar presente " o que escapa insistentemente à consciência: o além das coisas e do tempo, o âmago das angústias e das esperanças, o sofrimento do outro, o diálogo eterno entre a vida e a morte.
É decerto esse diálogo que é "representado" nestas páginas , aquele que Marie de Hennezel prossegue sem descanso com os seus doentes à beira do fim.
Jamais se apagará a memória da visita que fiz à unidade de cuidados paliativos onde ela despendia na altura a sua generosa energia. Eu conhecia o seu trabalho e dele falava, de quando em vez, com ela. Impressionaram-me, desde o primeiro momento, a força, a suavidade , que emanavam das suas palavras. Reencontrava-as nos médicos e nas enfermeiras que me receberam no seu serviço. Contaram-me a sua paixão, os seus esforços, os atrasos da França, as resistências a vencer. Depois, acompanharam-me à cabeceira dos moribundos. Qual era o segredo da sua serenidade? Onde iam buscar a paz dos seus olhares? Cada rosto marcou a minha memória com o seu cunho, como se fosse o próprio rosto da eternidade.
Vem-me à lembrança o de Danièle, talvez pela sua juventude e pelo seu silêncio. Paralisada , privada da palavra já só se exprimia pelo bater das pálpebras ou através do écrã de um computador que obedecia ao seu último dedo móvel. E no entanto, que vivacidade de espírito neste ser despojado de tudo, que curiosidade pelo além, que ela abordava sem o apoio de uma crença religiosa!
Marie de Hennezel fala-nos da dignidade dos derradeiros momentos de Danièle e dos seus companheiros de infortúnio. Fala-nos ainda, com uma modéstia que nos emociona, da vontade das equipas de cuidados que os acompanham no caminho final. Faz-nos entender a aventura quotidiana da descoberta do outro, o compromisso do amor e da compaixão, a coragem dos gestos de ternura para com aqueles corpos alterados. Ela mostra-nos como, longe de qualquer morbidez, é a alegria de viver que alimenta as suas escolhas e os seus actos.
Falámos muitas vezes de tudo isso . Interrogava-se sobre as origens desse poder de eliminar a angústia, de instaurar a paz, sobre a transformação profunda que ela observava em certos seres à beira da morte.
No momento de maior solidão, o corpo debruçado à beira do infinito, estabelece-se um outro tempo fora das medidas habituais. Por vezes, no espaço de dias, graças à ajuda de uma presença que permite que o desespero e a dor se exprimam, os doentes entendem a sua própria vida, apropriam -se dela , manifestam a sua verdade. descobrem a liberdade de aderir a si próprios. É como se, na altura em que tudo finda, tudo se libertasse, por fim, do amálgama das penas e das ilusões que impedem de nos pertencermos. O mistério de existir e de morrer não fica de modo algum esclarecido, mas é plenamente vivido.
Tal será, possivelmente, o mais belo ensinamento deste livro: a morte pode fazer que uma pessoa se torne naquilo para que foi chamada a ser; ela é ,talvez, no pleno sentido da palavra, uma realização.
Aliás, não há no homem uma parte de eternidade, algo que a morte gera, faz nascer algures? No seu leito de paralítica, Danièle transmite-nos uma última mensagem: " Não creio nem um Deus de justiça, nem um Deus de amor. É demasiado humano para ser verdadeiro. Que falta de imaginação! Mas isso não me leva a crer que sejamos apenas reduzíveis a um feixe de átomos. O que implica que existe algo além da matéria, chamemos-lhe alma ou espírito ou consciência, o que se quiser. Eu creio nessa eternidade. Reencarnação ou acesso a um outro nível totalmente diferente... Quem morrer verá!"
Estas poucas palavras dizem tudo: o corpo dominado pelo espírito, a angústia vencida pela confiança, a plenitude do destino cumprido.
À imagem de Danièle, a obra de Marie de Hennezel possui uma fortissima densidade humana.
Como morrer?
Se existe uma resposta , poucos testemunhos a podem inspirar com tanta energia como este.
François Mitterand, in Prefácio ao livro de Marie Hennezel, " Diálogo com a Morte", Ed. Casa das Letras, Fevereiro de 1997, pp. 7-9
Sobre o livro e a autora
Marie de Hennezel |
"Neste livro, Marie de Hennezel diz-nos o modo como nos devemos relacionar com aqueles que vão partir. O que fazer? Como escutá-los? Trata-se de descobrir as transformações profundas registadas diante da morte , «quando existe dor , é certo , mas também doçura, muitas vezes uma infinita ternura». Além de que deve ser « uma ocasião inesquecível de intimidade».
Marie de Hennezel nasceu em 1946, é casada e mãe de três filhos. estudou Psicologia Clínica e Psicanálise Jungiana. Como Psicóloga , começou por trabalhar com mulheres emocionalmente perturbadas e acompanhou casos de psicoses avançadas.
Tem exercido, desde 1987, na primeira Unidade de Cuidados paliativos para doentes terminais ( de cancro e sida) , em Paris, Pratica a haptonomia, a ciência de curar pela afectividade, defendendo um contacto físico com os doentes.
Tem uma vasta obra dedicada ao tema , tais como A Arte de Morrer e Nós não nos despedimos, (editados pela Casa das Letras), onde se relata a importante ( e rara) experiência de quem assistiu , profissionalmente a largas centenas de mortes onde, com razoável frequência , tem tentado " equilibrar o tratamento médico com uma dimensão humana , de comunicação com o doente."
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