Por
António Lobo Antunes
“Penso que me livrei daquilo para
sempre e no entanto, quando menos espero, Angola regressa, as Terras do Fim do
Mundo, os aquartelamentos miseráveis de Ninda e Chiúme, perto da fronteira com
a Zâmbia, o meu sofrimento e a minha indignação permanentes. Volta e meia
aparecem nestas crónicas, perdoem-me, ia escrever outra coisa completamente
diferente, a esferográfica estava quase no papel e pumba, a guerra veio, de
surpresa, empurrar-me para si. Não imaginava que durasse toda a vida, e se me
encontro com camaradas meus estamos subitamente lá, tão novos, vejo-os de
camuflado ou vejo os camuflados sob a roupa que trazem, vejo os pelotões a
saírem, vejo, por exemplo, o Eleutério a regressar da mata com o seu, desfeitos
de cansaço. Não consigo esquecer. Os outros também não e as coisas mais
difíceis só falamos delas entre nós. Não as pus no papel sequer por uma questão
de pudor e, sobretudo, por se tratar de uma carga só nossa, impossível de
partilhar com quem não a viveu. De modo que Angola se tornou um segredo que
nunca pus em nenhum livro, andei apenas à roda, quando muito um episódio aqui,
outro ali, mas jamais me referi às vivências tenebrosas e horríveis que, apenas
com aqueles que as sofreram comigo, ao meu lado e eu ao seu lado, me consinto
mencioná-las. E todavia o leitor não calcula quanto nos apetece relatar, dizer,
soltar de nós. Iremos com elas para a terra e custa-me ir com elas para a terra
sem ter dado testemunho, mas não posso. Quem iria entendêlas? E depois não
quero, não queremos que conheçam esse lado tão íntimo, tão duro, que deu cabo
da nossa juventude, está a dar cabo da nossa idade madura e dará cabo da nossa
velhice. Em todo o caso julgo que disfarçamos bem. Estou a pôr estas palavras
nestas folhas e, de repente, dou-me conta da força com que carrego no papel com
a esferográfica a fim de impedir a caneta de se meter pelos caminhos mais
secretos da dor. Stress post-traumático temos todos, deixemo-nos de rodeios,
sejamos sinceros, só quem passou pelo mesmo sabe como é. Há tempos estive no
estrangeiro numa reunião com militares de diversas guerras, da Argélia, do
Vietname, até da Coreia e senti-me entre irmãos. Eram tão parecidas as nossas
histórias... Estávamos tão próximos uns dos outros. E agora, de repente,
veio-me à ideia o escritor Pepetela, meu Amigo, que combateu pelo MPLA no mesmo
sítio que eu, em Ninda, e nos via dentro do arame farpado e nos atacava, nos
flagelava.
- Ainda bem que não te matei
disse-me ele um dia, porque eu passava
as noites na antiga casita do chefe de posto, junto ao arame farpado, no meio
de um milheiral, e não teria sido difícil sacar-me à mão ou enfiarme uma lâmina
na goela, ainda por cima com as folhas secas do milho a restolharem aos gritos.
Quando nos encontramos o nosso abraço é muito mais do que um abraço mas só ele
e eu sabemos disso. Olhamo-nos e sabemos. Não são necessárias mais palavras.
Ainda bem que não te matei chega. Uma vez disse-lhe
- Obrigado por não me teres morto, meu
sacana
e apertámo-nos de novo com tantas
emoções diversas lá dentro. E invejei-o porque naquele inferno a vida dele
tinha sentido e a minha sentido algum. África para mim foram vinte e sete meses
num coma agitado de que não despertei ainda totalmente, de que não despertarei
totalmente. Paz? É coisa que a minha vida não tem há tantos anos. Paz,
serenidade, sentimentos assim, só me chegarão com a morte. E isto é muito
injusto porque éramos boas pessoas, pessoas comuns que obrigaram com incrível
crueldade, àquele inferno. Ganhei camaradas, ou seja irmãos, mas valerá isso o
que perdemos? Durante os almoços anuais olho em volta e só vejo homens feridos
e eu no meio deles, ferido também. Olhamos e descobrimos as chagas que nem as
pessoas mais próximas da gente reconhecem, graças a Deus. Só nós podemos
lambê-las uns aos outros com um simples olhar. E tudo ficará por dizer. Quando
leio seja o que for sobre a guerra o que me vem à ideia é sempre
- É muito mais do que isso, é muito
mais do que isso
e não entro no isso por puro medo de
não sair de lá. De maneira que, de quando em quando, aparece-me um destes
vómitos oblíquos. O comandante chefe, general Costa Gomes, para a gente, da única
vez que se dignou aparecer:
-
Chalala-Nengo? Um dia destes vocês acordam bem dispostos e entram por ali
dentro
e, acerca
disso, não digo mais nada. Adiante. Acho que, de Angola, me livrei um bocadinho
agora, espero ter uns meses tranquilos para escrever até que o vómito regresse,
porque vem e vai, vem e vai, vem e vai. Peço-vos desculpa por esta crónica mas
necessitava de fazê-la a fim de poder regressar às outras. Peço, sinceramente,
desculpa. Encontrar-me-ão aqui para a semana. E não escrevi o que desejava nem
espero que compreendam. Melhor: não desejo que compreendam.”António Lobo Antunes, em Crónica
publicada na revista Visão, em 28.01.2016
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