A Náusea
Nasceste
moribundo
na gradual
asfixia dessas horas...
a atmosfera
atômica foi teu regalo
tua primavera
deflorada.
Tiveste,
no caminho
luminoso da aventura,
a
inconsciência da angústia e do impasse.
Amaste
adejadas crianças
com suas
boquinhas de flauta
e em todos os
seres amaste a missão da poesia.
Agora porém,
o tempo da
pátria
é um mandato
de silêncio
e tu,
vertiginosamente,
amadureces
teu grito.
Cada dia,
mais e mais,
pesa-te o
cansaço,
o viscoso
cansaço de hospedar um coração calado,
de fingir
diante do ultraje dos decretos,
de espiar-te
como uma inalterável crisálida.
Em tuas vísceras
borbulha um
legítimo vômito,
pela condição
de viveres num tempo de fezes
de cínica
injustiça e maus pressentimentos.
Subitamente
conheces a
própria definição:
um obelisco
de náusea,
eis tua
espantosa estrutura.
Tu te ergueste
em náusea
contra a
inconfessável cumplicidade dos homens,
tu herdaste a
náusea
a nauseabunda
náusea medieval deste século.
Tua tese
será:
A náusea
cratera de
pânico
na expressão
poética do mundo.
A náusea
enigma manso como um poste
a náusea
herança alarmante para os que
estão nascendo
a náusea
pacto injusto do opressor contra
o oprimido
a náusea
contra o famélico cancro racista
a náusea
contra os réus de Nurembergue
a náusea
contra o delito de Hiroshima
a náusea
contra o muro de Berlim
a náusea
contra a retórica paz dos tratados
a náusea
contra as tréguas violadas
a náusea
contra a guerra fria
a náusea
contra os gatilhos dessa paz armada
a náusea
contra o polvo imperialista num
tempo planetário
a náusea
contra a invasão do Vietnam
a náusea
contra o isolamento continental
de um povo
a náusea
contra uma organização
interamericana de fantoches
a náusea
contra o quartelaço sobre a
pátria
a náusea
contra o desterro dos heróis
a náusea
contra os cárceres da
neo-inquisição
a náusea
contra as acusações
inquestionáveis
a náusea
contra a angústia de um povo silenciado
Como uma
ameaça imprevisível
a náusea toma
conta do país.
Sanciona um
outro calendário para os nossos dias,
e ele marca o
medo,
a
desesperança
e o silêncio.
Agora o nosso
sonho é uma opção mortal
e ante a expectante
bússola do tempo
a liberdade
treme em nosso gesto
quando o
artefato da arte é fato
é cântico de
protesto.
Eis a
mensagem humana
e sem
meiguice
de um tempo
já sem templo.
E tu, entre
tantos,
saberás
conter essa indignação
somente no
lirismo dos teus versos,
ou irás colar
teu escarro no pátio sangrento dos quartéis?
Agora e mais
que nunca
escava uma
trincheira no teu peito e canta
canta, canta
sempre
canta para
saudar a vida
canta para
hastear um sonho
e, como uma
cigarra, canta até morrer.
A ti compete
esgrimir o invencível gume do poema
e retalhar as
forças mal-armadas.
Tu tens a
panacéia da palavra
para aliviar
as equimoses deste povo.
Com o arco
luminoso do teu canto
lança tua
flecha peregrina
buscando o
arcano mundo dos iguais.
Fecundarás o
tempo com a lírica semente da esperança
e mesmo
solitário, silenciado ou esquecido
terás
anunciado a primavera
porque
ousaste sonhar a despeito da alienação e da descrença.
Eis o ar que
tu respiras
teu mastro e
o teu pendão.
E nas
entrelinhas dos teus versos
recrutarás o amor e a liberdade
para que
possam, os que virão, pressentir essa beleza,
essa flor
inadiável
desabrochando
enfim no coração dos homens.
Curitiba,Outubro
de 1965
Manoel de
Andrade, in “Poemas para a Liberdade “, Edição bilíngue, Editora Escrituras, S.
Paulo, Brasil
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