Despejadas
diante de um edifício vazio ocupado pelo movimento Corralia Utopia,
onde
encontraram refúgio. Sevilha, 30 de Maio de 2013 |
Espanha: Sou a despejada que fala (2/3)
Até
2008, Cristina Fallaras viveu uma vida estável, trabalhando como escritora e
vice-directora de um jornal. Então, grávida de oito meses, foi demitida e
deslizou para o estatuto de mãe desempregada e sem domicílio fixo. Um percurso
tragicamente banal, na Espanha em crise. Eis o seu testemunho.
Por Cristina Fallarás
Escrevi
"Pode acontecer a qualquer um". Escrevi "Os meus filhos vivem
abaixo da linha da pobreza". E a 25 de Janeiro de 2012, no jornal El
Mundo, também escrevi "Estou para alugar".
"Mulher
branca, de 43 anos de idade, jornalista, escritora e editora. Altura – 1,69 m,
60 kg, ruiva descorada, olhos azuis. Estudos universitários, vinte e cinco anos
de experiência em jornalismo em quatro jornais espanhóis, quatro estações de
rádio e três cadeias de televisão. Seis livros publicados, incluindo quatro
romances. Três foram premiados. Experiência na organização de redacções,
equipas de trabalho, campanhas de comunicação, criação de páginas web e récitas
de Gil de Biedma. Capacidade de escrever ou falar sobre literatura, política,
economia, culinária, sexo, violência, edição, família e suas dificuldades,
desemprego, crime, sindicalismo e penas, no sentido mais amplo.
Está
para alugar para: pensar, cuidar de uma casa, mesmo que a missão inclua apanha
de couves. Escrever todos os tipos de textos, de ficção ou não, correspondência
incluída, mesmo que implique renunciar à respectiva assinatura, se for
solicitado [...]. Passear animais ou pessoas, de preferência pessoas. Este
serviço inclui a conversa. Projectar acções de obediência ou desobediência,
públicas ou privadas.
"Qualquer
serviço que não esteja incluído na lista e que faça falta será amavelmente
considerado e respondido. Dá pelo nome de Cristina. Preços a negociar. Se
interessado, é favor contactar cristinasealquila@gmail.com. Para relações
sexuais, sexo oral, strip-tease ou similares, é favor abster-se."
Nua e
aterrorizada, mas: é preciso falar. Falar do medo, formular a angústia, narrar
a culpa.
Tive
respostas. A maioria das respostas, apesar das indicações, com pedidos de
serviços sexuais, por vezes muito imaginativos. Mas quase ninguém levou a sério
a minha oferta. No entanto, era verdadeira, como tudo o que escrevo e publico
no diário. Era tão verdadeira como o corte da electricidade previsto para o mês
seguinte; tão verdadeira como as moedas contadas para comprar o leite dos
pequenos almoços. Mas essas coisas, é preciso tê-las vivido para as entender,
para estar consciente delas. Pensava que estava consciente e, no entanto, o
aviso de despejo que me mandou o senhorio teve o efeito de um bloco de gelo que
caiu como um peso morto activando uma mola, deixando uma sensação de culpa. Nua
e aterrorizada, mas: é preciso falar. Falar do medo, formular a angústia,
narrar a culpa.
A negação
Chamo-me
Cristina Fallaras, a desalojada que fala. Exactamente quatro anos antes da
minha decisão de falar, numa manhã morna de Novembro, às 10 horas da manhã,
precisamente na segunda-feira 17 de Novembro de 2008, o director do jornal onde
eu era directora-adjunta [ADN, um diário gratuito espanhol, pertencente ao
grupo Planeta, que deixou de ser publicado em Dezembro de 2011] despediu-me.
Grávida de oito meses. Naquela época, a Espanha tinha 2,5 milhões de
desempregados – achávamos que era um horror, o que é risível, hoje – e os
presságios mais perspicazes previam que a crise larvar se prolongaria até 2010,
talvez até ao início de 2011. Absurdo, respondíamos em coro, uma crise não pode
durar tanto tempo! O governo de José Luis Rodríguez Zapatero falava de
"brotos verdes", de que já tínhamos batido no fundo e que tudo
começava a florescer novamente. Pouco depois, o socialista injectaria milhares
de milhões de euros nos bancos espanhóis. Dinheiro público.
Foi
aí que começou o meu despejo. Pela minha demissão. E com que frivolidade se
tomam estas decisões. Em Novembro de 2012, o jornal El País despediu 129
jornalistas. Lembro-me de pensar: carne para despejo, venham daí, cá para
baixo, arranja-se espaço. Como veterana – em 2008, os despedidos foram cerca de
800 mil -, sei quais são os passos que se seguem.
A
saber: primeira etapa. Tenho bastante valor, sou uma grande profissional. Tenho
a minha indemnização, uma boa quantia, e tenho o subsídio de desemprego. Pelo
menos por um ano e meio. Respiro fundo durante dois meses, para descansar e
engolir o sapo. Esta etapa dura pouco menos de um ano.
Segunda
etapa. Está a acabar-se o subsídio, não devíamos ter feito aquela viagem. Vamos
mudar as marcas de sabonete, de roupa, de comida. Prioridade para as crianças:
que não se apercebam de nada. Tenho que montar qualquer coisa, uma empresa de
consultoria, um pequeno negócio, uma agência de comunicação. Vou investir o que
resta da minha indemnização para garantir o futuro da família. Estupores de
políticos. A segunda etapa abrange todo o segundo ano.
A descida
Preciso
de comprimidos. Se me cruzo com um político na rua, torço-lhe o pescoço.
Terceira
etapa. Meninos, este ano não há férias. Amor, acabou-se o carro. Bolas, o
subsídio de desemprego durou muito pouco. Agora, só as marcas mais baratas, e
arroz a granel para os adultos, nada de roupas. A pequena empresa ainda não deu
nada, como poderia ser rentável em poucos meses? E se afinal não sou assim tão
boa profissional? E porque é que o meu companheiro não arranja trabalho? Se
calhar não se está a empenhar muito. Preciso de comprimidos. Se me cruzo com um
político na rua, torço-lhe o pescoço. Ou ao empregado do meu banco. Se me
voltam a telefonar por causa do atraso da prestação, rebento. Preciso de
comprimidos. A terceira etapa compreende os primeiros dois terços do terceiro
ano.
Quarta
etapa. Preciso de comprimidos mais fortes. Está tudo com meses de atraso:
mensalidade da casa, água, gás. O banco já não me responde. Querido, a carne é
para as crianças, eu com uma massa fico bem. É da minha vista ou estou a
envelhecer como um raio! Ninguém nos telefona já. Vou ao supermercado; entretém
a caixa enquanto escondo pasta de dentes e lâminas de barbear dentro do casaco.
A quarta etapa termina com o despejo. O que resta de ti, agora, é apenas
estatística.” Libération Paris, Presseurop, 30 /07/2013
Continua.
Este
artigo foi publicado pela primeira vez em espanhol a 12 de Dezembro de 2012, na
revista digital argentina Anfibia.
Leia mais: -sou-despejada-que-fala-1/3
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