«O sol que se punha cobriu-se de novo.
A tempestade vai voltar. Aquela massa oceânica da tarde, de um azul-negro,
instala-se lentamente sobre a cidade. Vem de leste. A pouca luz que faz chega
para ver a sua cor ameaçadora. Eles devem estar ainda na varanda. Ao fundo da
avenida. Sim, agora os teus olhos são azuis – diz Pierre –,e desta vez é por
causa do céu. (...)
Eis o
aguaceiro. O oceano lança-se sobre a cidade. (...)
– É só
franceses – diz Claire.
À luz das
velas a sua beleza é ainda mais evidente. Ter-lhe-ão dito que era amada? Ei-la,
sorridente, preparada para uma noite que não haverá. Nem os seus lábios, nem os
seus olhos, nem o seu cabelo, em desalinho esta noite, nem as suas mãos
afastadas, abertas, soltas na alegria da promessa de uma felicidade muito
próxima, nada nela prova que tenha abandonado já a observação silenciosa da
promessa dessa felicidade próxima.
Eis a chuva.
Cai com tal estrondo sobre a vidraça que cobre a sala de jantar, que os
clientes têm de gritar para pedir os pratos. Há crianças que choram. Judith
hesita. Mas não chora.
– Quanta
chuva – comenta Claire, e espreguiça-se, impaciente – ; é incrível que possa
chover tanto, é incrível; ouve, Maria, ouve só como ela cai.
– Tiveste
medo, na estrada.
– É verdade –
lembra-se Claire.
A confusão
era geral no hotel. Ainda não chovia, mas a tempestade aguardava, ameaçadora.
Quando Maria deu com eles, estavam no escritório do hotel. Conversavam, os dois
perto um do outro, no escritório. Maria parou, cheia de esperança. Eles não se
aperceberam da sua presença. Foi então que ela viu as mãos deles unidas,
timidamente unidas, ao longo dos seus corpos próximos. Era cedo. Parecia que a
noite já tinha chegado, mas era a tempestade que escurecia o céu. Já não havia
qualquer vestígio de medo nos olhos de Claire. Maria achava que tinha tempo –
tempo – de ir até à praça, até àquele café que tinham visto à chegada. (...)
Maria vira-se
de novo para a frente. Mas não suporta deixar de vê-lo. É intenso o desejo que
tem de olhar para ele. Desapareceu já a expressão desvairada do seu olhar.
Resta apenas o olho. E, sobre o olho, ergue-se maquinalmente a pálpebra
enquanto leva o cigarro à boca. Nada. Rodrigo Paestra já só tem forças para
fumar. Porque terá seguido Maria até ali? Por uma amabilidade, por uma atenção
derradeira, sem dúvida. Responde-se a quem chama. Que é ele agora, Rodrigo
Paestra? Maria devora-o com o olhar, devora com o olhar aquele prodígio
tangível, aquela flor negra alimentada esta noite pela desordem do amor. (...)
Algo se
altera no ar que se respira, uma palidez que percorre o trigo. Há quanto tempo?
Há quanto tempo dorme? Algo se quebra algures no horizonte, um corte incolor,
irregular, sem contornos preciso. Algo se quebra algures na cabeça e, no corpo,
cresce um tremor novo, incomparável, que procura definir-se. Contudo, contudo o
céu continua obviamente puro e azul. Continua. Claro, tratava-se apenas de uma
claridade acidental, de uma ilusão perfeita causada por uma mudança se humor,
causada por uma complacência súbita, vinda de longe, por fadigas diversas, e
por esta fadiga, pela fadiga desta noite. Talvez.
Não. É mesmo
a primeira claridade da manhã. (...)
Enquanto ele
dorme, Maria vê-se privada do seu olhar perfeitamente vazio. (...)
– Ao meio-dia
– diz Maria. – Ao meio-dia estou aqui, ao meio-dia volto. Ao meio-dia.
– Ao meio-dia
– repete Rodrigo Paestra.
Com os dedos,
ela mostra o sol e abre as mãos muito abertas para ele entender.
– Meio-dia,
meio-dia – repete.
Ele inclina a
cabeça. Percebeu. Depois dá meia volta e procura um esconderijo em toda aquela
extensão de trigo, em toda aquela extensão sem fim. O sol cai já inteiro e
bate-lhe na cara, a sua sombra é perfeita, sobre o trigo, longa.
Terá encontrado
um esconderijo para acalmar a sua fadiga. Afasta-se. Com a mão arrasta a capa.
Não traz nenhum casaco, apenas uma camisa azul-escura, como todos os homens da
sua terra.
Avança no
caminho, pára, parece hesitar, depois penetra no trigo a uns vinte metros do Rover,
e deixa-se cair, fulminado, de súbito. Maria aguarda. Ele não se levanta.
Na estrada
nacional, longe da argila húmida dos campos de trigo, instala-se já o calor. O
calor continuará a aumentar, até ao meio-dia, inevitavelmente, prolongar-se-á por
todo o dia, até ao crepúsculo. É assim no Verão.
O sol na
nuca, a náusea regressa, lancinante. Com as mãos presas ao volante, Maria luta
contra o sono. Julga vencê-lo mas a todo o momento parece derrotada. Contudo,
avança na direcção do hotel. (...)
Judith dorme.
Claire e Maria preparam-se para noites diferentes. Pierre lembra-se de Verona.
Levanta-se, sai do quarto e bate à porta da sua mulher, Maria. Assalta-o o
sabor urgente dos amores defuntos. Quando entra no quarto de Maria, vive já
esse luto do seu amor por Maria. O que ele ignorava era o doloroso encanto da
solidão de Maria, da solidão que ele provocou, desse luto dele mesmo que ela
exibe esta noite.
– Maria – diz
ele.
Ela
esperava-o.
– Beija-me –
pede.
Ela tem em si o perfume insubstituível do poder
dele sobre ela, da sua deserção do amor que tinha por ela, da passagem desse
amor a uma atenção apenas, ela tem em si o odor do fim do amor. (...)»Marguerite
Duras , in “Dez Horas e Meia numa Noite de Verão”, Ed.Edifel
“Dez Horas e Meia numa Noite de Verão” é o relato alucinado de um grupo de pessoas em viagem de férias pela Espanha. O que por aqui se passa, neste autêntico trabalho de angústia, desespero e solidão, é Duras do mais puro e acutilante, entre a agilidade e o rigor das observações, num plano literário verdadeiramente superior. Um livro raro."
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