“A vida é curta e é pecado perder o seu
tempo. Sou activo, diz-se. Mas ser activo é ainda perder o seu tempo, na medida
em que nos perdemos. Hoje é um descanso e o meu coração parte ao encontro de si
próprio. Se uma angústia ainda me estreia, é a de sentir este impalpável
instante escorregar-me por entre os dedos como as gotas do mercúrio. Deixai,
pois, aqueles que querem voltar as costas ao mundo. (...) Posso dizer, e direi
daqui a pouco, que o que conta é ser humano e simples. Não, o que conta é ser
verdadeiro e então, tudo aí se inclui, a humanidade e a simplicidade. E quando
posso eu ser mais verdadeiro do que quando sou eu o mundo? Sou satisfeito antes
de ter desejado. A eternidade está ali e eu esperava-a. Já não é ser feliz o
que eu desejo agora, mas apenas ser consciente.
Um homem
contempla e o outro cava o seu túmulo: como distingui-los? Os homens e o seu
absurdo? Mas aqui está o sorriso do céu. A luz aumenta e breve será o Verão?
Mas aqui estão os olhos e as vozes daqueles que é preciso amar. Estou preso ao
mundo por todos os meus gestos, aos homens por toda a minha piedade e o meu
reconhecimento. Entre este direito e este avesso do mundo, eu não quero
escolher, não gosto que se escolha. As pessoas não querem que se seja lúcido e
irónico. Eles dizem: «Isso mostra que não és bom.» Não vejo a relação. Decerto
oiço dizer a uma delas que é imoralista, traduzo que ela tem necessidade de
atribuir-se uma moral; a outra que despreza a inteligência, compreendo que ela
não pode suportar as suas dúvidas. Mas porque eu não gosto que se faça batota.
A grande coragem é ainda a de ter os olhos abertos para a luz como para a
morte. Além disso, como explicar a ligação que leva deste amor devorador à vida
a este desespero oculto? Se escuto a ironia escondida no fundo das coisas, ela
descobre-se lentamente. Piscando o olho pequeno e claro: «Vive como se...», diz
ela. Apesar de muitas pesquisas, aqui está toda a minha ciência.”
Albert Camus,
in “O avesso e o direito”, Editora Livros do Brasil
Sinopse
“O Avesso e o
Direito” é o primeiro livro de Albert Camus. Foi publicado ainda na Argélia, em
1937, com a tiragem muito discreta de 350 exemplares. Só em 1958, quando o autor
já se tinha tornado uma celebridade, é que o livro seria reeditado, desta vez
em França. E contudo, este livro impregna toda a restante obra de Camus. Estão
aqui presentes o fascínio da luz e da felicidade, as primeiras suspeitas do
absurdo («toda a absurda simplicidade do mundo»), os temas do silêncio, da mãe,
da indiferença mas também do amor, que irão perpassar ao longo de todos os seus
outros romances, e também de muitas das suas reflexões. A presente edição
inclui também o Discurso que Camus proferiu em Dezembro de 1957, em Estocolmo,
durante a cerimónia em que lhe foi entregue o prémio Nobel de literatura. O filósofo começou por
lembrar que “um sábio oriental pedia sempre, nas suas orações, que a divindade
se dignasse poupá-lo a viver numa época interessante. Como não somos sábios, a
divindade não nos poupou, e vivemos numa época interessante.”
É um texto
que resume bem a sua concepção do ofício de escritor: este «não pode hoje
pôr-se ao serviço daqueles que fazem a história; tem antes de servir aqueles
que a sofrem.»
Sem comentários:
Enviar um comentário