terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A humanidade e a simplicidade


 
“A vida é curta e é pecado perder o seu tempo. Sou activo, diz-se. Mas ser activo é ainda perder o seu tempo, na medida em que nos perdemos. Hoje é um descanso e o meu coração parte ao encontro de si próprio. Se uma angústia ainda me estreia, é a de sentir este impalpável instante escorregar-me por entre os dedos como as gotas do mercúrio. Deixai, pois, aqueles que querem voltar as costas ao mundo. (...) Posso dizer, e direi daqui a pouco, que o que conta é ser humano e simples. Não, o que conta é ser verdadeiro e então, tudo aí se inclui, a humanidade e a simplicidade. E quando posso eu ser mais verdadeiro do que quando sou eu o mundo? Sou satisfeito antes de ter desejado. A eternidade está ali e eu esperava-a. Já não é ser feliz o que eu desejo agora, mas apenas ser consciente.
Um homem contempla e o outro cava o seu túmulo: como distingui-los? Os homens e o seu absurdo? Mas aqui está o sorriso do céu. A luz aumenta e breve será o Verão? Mas aqui estão os olhos e as vozes daqueles que é preciso amar. Estou preso ao mundo por todos os meus gestos, aos homens por toda a minha piedade e o meu reconhecimento. Entre este direito e este avesso do mundo, eu não quero escolher, não gosto que se escolha. As pessoas não querem que se seja lúcido e irónico. Eles dizem: «Isso mostra que não és bom.» Não vejo a relação. Decerto oiço dizer a uma delas que é imoralista, traduzo que ela tem necessidade de atribuir-se uma moral; a outra que despreza a inteligência, compreendo que ela não pode suportar as suas dúvidas. Mas porque eu não gosto que se faça batota. A grande coragem é ainda a de ter os olhos abertos para a luz como para a morte. Além disso, como explicar a ligação que leva deste amor devorador à vida a este desespero oculto? Se escuto a ironia escondida no fundo das coisas, ela descobre-se lentamente. Piscando o olho pequeno e claro: «Vive como se...», diz ela. Apesar de muitas pesquisas, aqui está toda a minha ciência.”
Albert Camus, in “O avesso e o direito”, Editora Livros do Brasil

Sinopse
“O Avesso e o Direito” é o primeiro livro de Albert Camus. Foi publicado ainda na Argélia, em 1937, com a tiragem muito discreta de 350 exemplares. Só em 1958, quando o autor já se tinha tornado uma celebridade, é que o livro seria reeditado, desta vez em França. E contudo, este livro impregna toda a restante obra de Camus. Estão aqui presentes o fascínio da luz e da felicidade, as primeiras suspeitas do absurdo («toda a absurda simplicidade do mundo»), os temas do silêncio, da mãe, da indiferença mas também do amor, que irão perpassar ao longo de todos os seus outros romances, e também de muitas das suas reflexões. A presente edição inclui também o Discurso que Camus proferiu em Dezembro de 1957, em Estocolmo, durante a cerimónia em que lhe foi entregue o prémio Nobel de literatura. O filósofo começou por lembrar que “um sábio oriental pedia sempre, nas suas orações, que a divindade se dignasse poupá-lo a viver numa época interessante. Como não somos sábios, a divindade não nos poupou, e vivemos numa época interessante.”
É um texto que resume bem a sua concepção do ofício de escritor: este «não pode hoje pôr-se ao serviço daqueles que fazem a história; tem antes de servir aqueles que a sofrem.»

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