"Chamava-se Francisco Carreira e era sapateiro. A sua loja era um escuro cubículo sem janelas, com uma porta por onde só crianças podiam entrar sem se curvarem, pois pouco mais haveria de ter que um metro e meio de altura. Sempre o vi sentado no mocho, atrás de uma banca em cima da qual dispunha os utensílios do ofício e onde se viam, emergindo de uma imemorial camada de terriço, pregos tortos, aparas de sola, alguma agulha romba, um alicate sem serventia. Era um homem doente, gasto antes do tempo, com a coluna vertebral deformada. Toda a sua força se lhe juntara nos braços e nos ombros, potentes como alavancas. Com eles batia a sola, dava cera na linha, repuxava os pontos e apontava as cardas com duas pancadas secas que nunca lhe vi falhar. Enquanto eu me entretinha a fazer buracos num pedaço de cabedal com um vazador ou remexia na água a que a sola de molho dava o toque adstringente do tanino, contava-me histórias da sua mocidade, difusas conspirações políticas, a pistola que lhe havia sido mostrada como tenebroso aviso e que , palavras do avisador, se destinava a quem traísse a causa... Depois perguntava-me como ia nos estudos, que notícias tinha do que se ia passando em Lisboa, e eu desenrascava-me o melhor que podia para satisfazer-lhe a curiosidade. Um dia encontrei-o preocupado. Alisava os cabelos ralos com a sovela, suspendia o movimento dos braços ao puxar a linha, sinais que eu bem lhe conhecia e que anunciavam uma pergunta de especial importância. Daí a pouco o Francisco Carreira inclinava para trás o corpo torcido, empurrava os óculos para a testa e disparava à queima-roupa: " O amigo acredita na pluralidade dos mundos?" Ele tinha lido Fontenelle, eu não, ou só de ouvido gozaria de alguma escassa luz sobre o assunto. Engrolei uma resposta sobre o nome de Copérnico, e por aí me fiquei. De todo o modo, sim, acreditava na pluralidade dos mundos, a questão estava em saber se haveria lá alguém. Ele deu-se por satisfeito, ou assim me pareceu, e eu respirei de alívio. Muitos anos depois escreveria sobre ele duas páginas a que daria o título , obviamente inspirado em Lorca, de " O Sapateiro Prodigioso". Que outra palavra poderia eu usar senão essa? Um sapateiro da minha aldeia , nos anos 30, a falar de Fontenelle..."
José Saramago, in " As pequenas Memórias", Editorial Caminho, 2006
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