Para Caio Adolfo Sbruzzi (In memorian)
e Higino Oltramari
Quando o solo calcinado
murchou a flor da adolescência,
nossos anseios triturados
refugiaram-se nos subúrbios das raízes
e resvalamos entre vidas roucas.
Com o calafrio dos beijos descarados
o licor do coração foi servido na intensa bandeja dos prazeres.
O vento da volúpia gelou nossa inocência
a nau e o sal içaram o desencanto...
em algum lugar o amor foi abatido.
O tempo gerou as novas madrugadas
e a lua, no crescente, trouxe a seiva e a esperança,
então assomaram os semblantes
e agora nossos vinte anos se abraçam.
Somos três túrgidas taças de orfandade
ancorando os gestos e as frontes
no imantado arquipélago das mãos.
De busca em busca
de equívoco em equívoco
ingressamos em todos os recintos.
Penetramos nas salas da circunspecção
ora ouvindo a guitarra de Segovia,
ora meditando as “improvisações” de Kandinski,
ou dissecando “el poeta” ao cubo
e concluindo que “um golpe de dados”
determinou a vigília caleidoscópica do Finnegam.
Muito além destas vãs cogitações
desdobram-se exóticos cenários.
No ingénuo frescor desses deslumbramentos
assumimos a postura búdica
visualizando o “Sermão da Flor”.
Além do tempo e além do verbo
abrem-se os véus da percepção -- istmo entre vida e morte.
Acende-se o mistério
e tudo e a eternidade se esquivam do conceito.
Findas as meditações
enche-se a mesa de naipes
Eis: os amigos
nascem no caminho da penumbra
e do bocejo
e num desvio possível
e bem formoso
vão pressentindo
o aroma da mesma flor a ser colhida
a mesma balsa na passagem
a mesma algema repartida.
Nossos vinte anos se abraçam...
abraço-castanho:
Corpo flutuante na epiderme do rio
suando sal e sede.
A corrente amarga aonde te leva?
( a ti... que ninguém leva)
a ti onde te levas???
Pois tu irmão castanho imensurável
profanas uma deusa (mal amada)
com o suspenso punho da noite.
Promulgas a imortalidade – teu refúgio,
e depois de esconder-te na oblíqua madrugada
com tua posse de adúltero osculas uma rosa de barro.
Abraço-louro
Na tarde frouxa
trajando a expressão singela de um Gauguin
trajando a expressão singela de um Gauguin
inventas novas cores para o mundo.
Eis a tela:
Nas águas verdes do tempo
uma nova arca navegando...
uma bandeira branca hasteada no coração dos tripulantes...
um outro Ararat...
o porto da paz
montanha de luz, no sonho, na miragem e na distância...
uma Terra enfim azul, singrando, a toda brida, o Universo.
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Irmãos no desterro e na alvorada
e pelo tempo em que palpitar meu peito,
eu vos chamarei: dádiva de ouro.
Abraço-louro-castanho
em mim moreno pássaro do mar.
Dos anos florescidos na amizade
partilhada na alegria dos encontros
de novo se faz doce as uvas da linguagem
Nossos vinte anos se abraçam...
haverá outra primavera mais real???
onde, quando e com quem partilharás novamente essa magia???
Eis o teu enigma...
eis teu coração... de homem e de criança...
eis teu relicário... de saudades e de esperança...
Manoel de Andrade, Curitiba, 1962, in “ Cantares”, Ed. Escrituras
...Esta forma poética deslizante, agradável, retratando uma realidade realisticamente sangrante, realidade tão viva, tão áspera e sonora que chega a emocionar, sempre dirigida a Homem, à sua própria força para romper o cerco em que o mesmo Homem se eclipsa, todo este "modus" poético a que Manoel de Andrade, figura grande nos meios culturais do Brasil, já nos habituou, releva mais uma vez o expoente supremo da sua obra literária. Admiramos este escrever escrevivendo, esta perfeita integração da palavra poética no seu próprio corpo enquanto palavra, código de comunicação que nos lança num novo trilho, seduz-nos o olhar e faz-nos sentir o pulsar do oculto na poesia-pensamento... O certo é que... Quer na prosa, quer na poesia, Manoel de Andrade será uma referência no futuro da Literatura de Língua portuguesa.
ResponderEliminarCaro Varela Pires...
ResponderEliminarMuito me honra seu comentário. Honra-me pela dimensão da sua cultura, pela coerência das suas opiniões e a criatividade dos seus raciocínios. Suas palavras trazem o convite à reflexão. Essa frequência com que inauguras este espaço virtual, esse desafio intelectual diante de assuntos tão diversos, esse aceno com que tens saudado as coisas do Brasil, abrem os braços do meu reconhecimento para abraçar-te como um irmão, na beleza imperecível da poesia.
Manoel de Andrade