quinta-feira, 17 de maio de 2012

O Reino

 " O Reino  naquela  época  tremia de frio e de dificuldades. Tinha-se deslocado para a beira-mar, não se sabe bem porquê mas supõe-se fome. A fome vinha do interior e varria tudo para o oceano.
Nesta leva desgarrada, escapavam os camponeses, que tinham a barriga curtida, eram cardos, e que se cravavam na terra como uns danados, à dentada. Acocoravam-se nas tocas e nas dobras das montanhas para deixar passar a ventania, pareciam calhaus, seres empedernidos; depois voltavam ao trabalho, à semente que se enterra e ao fruto que se arranca. Habituaram-se às tempestades, fome para eles era o pão de cada dia.
 Os restantes, os que não tinham conseguido enganar a fúria dos vendavais, fugiram de roldão pelo país fora, atravessando aldeias e planícies, vinhas e repartições, hoje fazendo família neste ponto, amanhã mais naquele, até se verem diante do mar, acossados. Uma vez ali, ou entregavam o corpo  aos caranguejos ou faziam como o mexilhão: pé na rocha e força contra a maré. Daí, o nome de Reino do Mexilhão que lhe pôs a geografia em homenagem (homenagem?) a esse marisco mais que todos humilde, só tripa e casca.
       
       “QUANDO O MAR BATE NA ROCHA
          QUEM SE LIXA É O  MEXILHÃO”
Criatura ( porque o é), criatura à margem, mirrada, coisa pequena; bicho que se alimenta de água e sal, do sumo da pedra, ou de milagres, quem sabe – o mexilhão, oh vida, tem a ciência certa dos anónimos: pensa e não fala, vai por si. Se virou costas à terra foi por culpa dos doutores do interior ( dê-erres, assim chamados) e da conversa em bacharel com que o atacavam; unicamente por cansaço e desinteresse. Na sua condição de habitante do litoral era como o oceano que desabafava, levava os dias a medir o infinito e a remoer o seu ditado preferido: Quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão.
Um estrangeiro, mesmo o mais turista dos estrangeiros, não podia deixar de concordar que havia muita verdade no provérbio. Logo que nos outros reinos se declarava guerras ou preços lá vinha o vento a alastrar e quem pagava eram os mexilhões, apesar de não terem culpa nenhuma; se os serranos se deixavam arrastar das suas tocas, sabiam que era contra eles que vinham chocar e viam-se obrigados a fazer parede para não irem cair ao mar. Oh, vida.
Ao cabo de largos anos de experiência estes camponeses pendurados nas falésias, mexilhões no legítimo sentido, tinham criado pé, raízes de limo, obstinados em olhar as nuvens, o quer que fosse. À falta de comida mastigavam os beiços e os pensamentos que lhes trazia a brisa marítima (“ Quando o mar bate na rocha , etc.”) e isso e as rugas de tanto fitarem o além faziam-nos velhos antes do tempo. Nasciam já velhos, parece impossível.” José Cardoso Pires, in “ Dinossauro Excelentissimo”, Livraria Bertrand 

1 comentário:

  1. Que bem nos faz recordar o José Cardoso Pires e uma amizade muito forte que se desenvolveu até ao fim!... E logo, através de uma obra como "Dinossauro Excelentíssimo", tão polémica no antigo Regime político!... Quantas vezes os "coronéis da censura" não leram o livro de cima para baixo, de trás para o início, do início para o termo, sem perceber patavina do que o Escritor queria dizer?!... Era uma história que retratava um país e a sua situação política, social e económica. No entanto, mais parecia a essa gente do "lápis azul" uma história desencontrada e sem sentido. Ora, o que nunca, mas nunca faltou ao "Dinossauro Excelentíssimo, foi o real e verdadeiro sentido da sua própria diegese. O país, de então, estava lá todo inteirinho dentro dessa obra... Só eles, somente eles não o viam!... Hoje... Uma evocação emocionada de um dos mais notáveis escritores portugueses da nossa contemporaneidade, José Cardoso Pires!

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