quinta-feira, 10 de abril de 2025

Brasil, terra de contrastes


Zimbros

Canto os cantos e os recantos deste  mar
praias, prainhas e costões
ilhas e promontórios
escarpas, alcantis, rochedos perfilados.
Canto o sul soberano destas águas
a paisagem imensa que o alto do penhasco descortina
o repouso do oceano e das águas interiores
a carícia da brisa, esse imaculado oxigênio
as distâncias estendendo a magnitude do horizonte
abrindo nos meus olhos todos os graus das longitudes
os balneários próximos e distantes
a miragem dos brancos casarios vistos nas lonjuras litorâneas
as antigas cidades pontilhadas ao longo do cenário imenso.
 
Tudo aqui tem seu fascínio... 
as proas e os mastros ancorados
as velhas quilhas vencidas pelo tempo
a travessia lenta e solitária das embarcações.
Ao longe, quase inaudível, o ronco de motores...
é a incessante rotina dos barqueiros cruzando a baia de Zimbros.

Canto à beira destas águas de janeiro
misturado com essa boa gente dos verões
sob o sol ardente abençoando a vida
 
Canto os pescadores que chegam ao longo das manhãs
os nativos negociando os seus pescados
canto a fauna exuberante destas águas
os seus frutos palpitantes
falo do pescada, do robalo e da garoupa
das pedras semeadas de moluscos
dos rosários flutuantes de ostras e mariscos cultivados                                                             
das tarrafas se abrindo na foz do ribeirão
falo das águas cristalinas onde o arpão desliza impiedoso.
 
Falo das ilhas na distância
territórios preservados da ambição
recanto indevassável das aves marinhas
canto os ninhos com suas criaturas
os filhotes ensaiando o primeiro vôo sobre o mar
canto a esse  mágico ritual da vida.
 
Falo das praias desertas
dos seus íngremes caminhos
suas escavadas trilhas
do aroma da mata amanhecida
do grito da aracuã ecoando nas encostas
falo do estranho gemido dos bambuzais colhidos
                                                                     [pelo vento
dos rastros deixados nas areias solitárias
da mística solenidade dos silêncios  
de um intrigante mistério pairando na paisagem
do grato cansaço das longas caminhadas
 
Eis-me outra vez postado no topo rochoso da paisagem
e meu espírito mergulha na memória arquétipa das águas
e pergunto quando foi desenhado este cenário
e penso o mar com sua idade planetária
sua marítima  “eternidade”
e a minha finitude estremece ante esse tempo inumerável
e penso nesse mar sem testemunhas
nos milênios e nas eras em que o tempo boiava indiferente
                                                                  [sobre os oceanos
e penso ouvir contra os rochedos o idioma milenar
                                                                 [das ondas
transformando-se desde sempre nessa brancura tão fugaz
                                                                         [da espuma
e penso, ó mar, na tua infância cambriana
nesse território indecifrável de sílabas submersas
onde o verbo se fez sal, se fez escamas
e transitou desde o protozoário até o cetáceo
das conchas aos recifes coralíneos
e penso na caldeira primordial que forjou tua cálida
                                                              [temperatura
no teu materno regaço de algas, esponjas e medusas
nos teus primogênitos se espalhando pelos sete mares
teus partos, tuas dores agudas                                                              
nos vulcões acesos no teu ventre
nas tuas contrações submersas
tuas cordilheiras parindo teus filhos escarpados
tuas ninhadas de arquipélagos
essa nudez de granito que tu banhas e  beijas sem cessar
e por isso eu canto o mistério deste tempo imperscrutável
teus vastos e velados segredos
escondidos por trás da tua  presença intemporal
que me entrega agora tua beleza nestas águas de janeiro
e pergunto quem desenhou este cenário
a quem devo agradecer pelo encanto
pelo plácido remanso dessas águas
pelo itinerário das velas
por teus brancos cinturões de areia
pela amplidão das praias na vazante.
A quem, meu Deus, eu devo agradecer...(?)
que arquiteto sideral traçou as linhas caprichosas
                                                       [desta costa...(?)
agradecer pelo sabor dos teus frutos
pelas paisagens submersas
por essa multidão de vidas que preservas
a quem agradecer pela incorruptível salinidade
que tuas águas nos ofertam nessa taça imaculada
a quem, além de ti Baía de Zimbros,
a quem,
além da tua própria beleza...
                               Zimbros, Janeiro de 2005
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, 2007, pp.48-51
 
Brasil  em 4K, pelos Scenic Relaxation Film
"O Brasil é um dos países mais incríveis do mundo. Desfrute deste filme de relaxamento panorâmico em 4K com os destinos mais bonitos do Brasil. Das maravilhas do Rio de Janeiro à vida selvagem da Amazónia, o Brasil tem muito para ser explorado."

Manoel de Andrade
Manoel de Andrade, poeta de Curitiba (Brasil), tem vários livros publicados . É sempre um prazer evocá-lo .  Poeta, ensaísta, jornalista, Manoel de Andrade é um escritor prolífico. Com um passado empenhado e marcado pela resistência à Ditadura militar, que vitimou o Brasil durante décadas do século passado, Manoel de Andrade soube imprimir à sua obra a voz profunda de poeta e a força mobilizadora de prosador.
Desse tempo, Manoel Andrade escreveu  um vasto e valioso registo memoralístico, do qual já temos publicado alguns excertos e  que retomamos  para completar, com excelência,  o tema de hoje: o Brasil.

Brasil
por Manoel de Andrade
O jangadeiro
 
      "Quando tomei o rumo do nordeste, conhecia muito pouco do meu país e do meu povo. Foi uma inesquecível aventura de trinta dias, desde Curitiba até São Luís do Maranhão, pelo litoral e a volta pelo sertão, num percurso feito num fusca cobrindo  quatorze estados brasileiros que totalizou, com o  regresso, quinze mil quilômetros.
      Para um brasileiro do sul, o nordeste era, quarenta anos atrás, um país à parte. Outro clima, outra vegetação, outro povo, outra maneira de expressar-se musicalmente, poeticamente, religiosamente. Outra maneira de ver e de sentir a vida, um sentimento trágico e telúrico do seu mundo, vivenciado num cotidiano de abandono e, paradoxalmente, de esperança. Desde a escola, vamos formando sobre os nordestinos uma imagem de valentia e sofrimento, resignação e uma admirável perseverança na providência divina. Nossa História contava sua luta contra os invasores holandeses, sua heroica resistência na Guerra de Canudos e a tradição popular narrava as façanhas do justiceiro Lampião e seu bando de cangaceiros. Mas contava também de um nordeste cuja imagem nos chegava pelas notícias das inundações catastróficas e pela calamidade das secas. De todas as aventuras que passei, acontecimentos insólitos que presenciei, pessoas excepcionais que conheci e dos tantos fatos inesquecíveis, trago ainda, nas paisagens da memória, a expressão grata e audaciosa de dois retratos humanos: o jangadeiro do litoral e o vaqueiro do sertão.            
      Era meu primeiro dia em Fortaleza. O sol baixava avermelhado e a ventarola do carro me soprava o ar acariciador da brisa marítima. Passavam das seis da tarde quando cheguei à praia de Iracema, imortalizada pelo romance do escritor cearense José de Alencar. O mar quase calmo, de uma escura cor alaranjada, refletia as tonalidades metálicas do horizonte onde a luminosidade agonizava nos esplendores do crepúsculo. Todo o ambiente estava carregado dessa atmosfera aromática e refrescante que baixa no entardecer dos trópicos. Nas mesinhas dos bares as pessoas  chegando e eu estacionando o carro para buscar o meu lugar. Barracas com tapioca, milho cozido e outras comidas típicas.  Acabava de entrar no centro da capital do Ceará e estive ali sentado numa daquelas mesas ao ar livre por algum tempo.  A água de coco, o sabor gostoso dos petiscos, a conversa animada dos demais, meu solitário encanto, os novos passos da minha longa aventura Depois cruzei a rua e dirigi-me para a praia.  Ali estava Iracema, com sua intimidade de praia pequena, sua areia finíssima e branca, fazendo justiça à fama que tinha pela sua beleza. Havia muitas jangadas na areia e algumas chegando, ao longe. Acheguei-me a um grupo  de jangadeiros que  conversavam em torno de um varal de redes onde alguns deles consertavam os  furos das malhas.
      – No Rio Grande do Norte vi algumas jangadas, mas eram bem menores que estas,  disse ao homem fornido, de uns cinquenta anos, com um aspecto digno e comunicativo, estampado num rosto de bronze marcado por profundas rugas que corriam bem vincadas entre  os pômulos e a boca.
       – É que o Ceará é a terra dos jangadeiros  --- exclamou ele sentando-se na borda de uma daquelas frágeis balsas de cortiça. Voltou a olhar-me, perguntando:
       – De onde vem?
       – Do Paraná  – respondi.
       – E  que o traz tão longe? Não parece turista. – Comentou certamente vendo minha imagem empoeirada e em desalinho.
      – Conhecer um pouco da nossa terra e especialmente o nordeste..., -  ouviu, fazendo  um gesto de aprovação com a cabeça. Aproveitei o momento de silêncio e perguntei- lhe: – E pescam muito longe?
      – Depende..., as jangadas pequenas saem de manhã e voltam à tardinha. Pescam entre dez e vinte milhas. Nós pescamos em alto mar, entre cinquenta e sessenta milhas da costa. Saímos num dia e voltamos no outro.
      – E se lá no oceano vocês pegam uma tormenta?
     – Já enfrentámos tantas, e muitas jangadas nunca voltaram. O mar tem suas manhas, mas nós crescemos em cima de uma jangada e se não pescamos, não temos como dar de comer aos nossos filhos.
      Impossível relembrar tantas conversas que tive com os jangadeiros durante os cinco dias que estive em Fortaleza. Todas as tardes eu voltava à praia de Iracema. Bebia a água-de-coco, enquanto meu olhar navegava com as jangadas que chegavam do horizonte, velas triangulares bojadas pelos alísios queao entardecer, sopram do mar. Na véspera de minha viagem a São Luís do Maranhão, fui jantar na casa de um xará, e por isso nunca esqueci  seu nome. Manoel tinha lá seus quarenta anos e me levara, por alguns cruzeiros, a dar uma volta de jangada pela manhã e depois de uma cerveja, na chegada, já éramos amigos.  O caldo de peixe ainda fervia e seu aroma recendia no ambiente, quando cheguei ao anoitecer. Uma casinha de madeira, fogão de lenha e a privada lá fora, no quintal. Aquela pobreza digna que lembrava minha adolescência em Itajaí. A esposa, baixa, gorda e com o rosto cheio de sardas, falava pelos cotovelos e não se cansava de exaltar as virtudes de uma de suas filhas que estava por casar e era rendeira. O filho mais velho era também jangadeiro e antes da comida nos sentámos os três num banco sob um caramanchão de arbustos que havia em frente da casa, onde havia também um cajueiro e um pé de araçá. Presenteei meu amigo com uma garrafa da cachaça Pitu, que eu trazia desde Pernambuco e esse foi nosso aperitivo. Depois entrámos para jantar. Sobre a mesa um panelão com caldo de garoupa e o pirão escaldado com farinha de mandioca enfeitado de coentro. Não tive vergonha de comer, relembrando os caldos de peixe, o pirão e o peixe frito com que alimentei minha infância na Praia de Piçarras, em Santa Catarina. Mas faltou o tomate e a alfavaca, temperos que, pelo que vi, não são muito usados no nordeste. Depois da sobremesa de rapadura voltámos satisfeitos ao caramanchão onde ficámos até quase meia-noite trocando nossas culturas. Quando me despedi uma das filhas de Manoel veio entregar-me uma garrafa com areias de  cores várias formando um desenho horizontal do mar com várias jangadas.
      Quantas coisas práticas, estranhas e lindas ouvi naquelas três horas de conversa  sobre o mar e os jangadeiros. O jangadeiro é filho e neto de jangadeiro e essa descendência dificilmente trocará o mar pela terra. As jangadas menores medem três metros por oitenta centímetros e as maiores chegam a ter nove metros de comprimento por dois de largura. Manoel me disse que uma jangada pode emborcar, mas não submerge nunca, e as grandes jangadas podem suportar o peso de três a quatro mil peixes. Quando o sol nasce já navegam em alto mar. Às quatro horas da manhã já estão “botando pro mar” e no fim da tarde ou no dia seguinte “dão de vela” para a terra. Contaram-me que lá fora não se conversa, não se canta ou assobia. Qualquer som pode afugentar os peixes. O único que pode falar ou bramir sua cólera é o mar. Ouvir seu monólogo, sua voz de barítono, sentir seu balanço, sua quietude, sua dimensão horizontal, suas águas calmas beijarem carinhosamente seus pés, essa é a linguagem que fala à sua alma. Além da voz das águas, só o silêncio. O silêncio absoluto, a solidão perfeita. O silêncio que enfeitiça e purifica, um tempo absoluto, de que fala Bergson, sem cronologia, um tempo que dura sempre, que invade e  plenifica a mística  solidão do espírito. É o misterioso silêncio que domina e que liberta. Perdidos na imensidão do Atlântico, o jangadeiro se acostuma ao silêncio e à solidão.  São partes da sua grandeza. No sul diz-se que são supersticiosos, mas essa não foi minha impressão. A sua pobreza e as arriscadas condições de trabalho fizeram dele um homem sem medo e sem outra crença que não seja a esperança de voltar com o que necessita para sobreviver. Manoel me contou histórias de grandes jangadeiros que eram chamados de  mestres. Os relatos quase lendários contam de mestres que viram navios-fantasma atravessando por cima das jangadas e de estranhas canções que foram ouvidas em alto mar.
      Para o jangadeiro cada viagem é uma aventura que se renova. A sua vida é uma batalha diária contra o mar e contra o vento. Alguns não regressam nunca mais, contudo o mar será sempre a sua vocação irresistível e a fatalidade faz parte da sua opção pelo mar. Amará o mar por toda a sua vida e sua alma está vinculada a essa singular fidelidade. Os nordestinos do sertão emigram para as grandes cidades da região e para o sul do país, mas os pescadores jamais deixam o litoral. Simples, anônimo, solitário e destemido, o jangadeiro é um titã. É o gigante da costa nordestina e poucos navegantes em todo o mundo poderão igualá-lo em ousadia e destreza. Contudo, é um gigante esquecido. Em suas precárias condições de vida e apesar de ir buscar tão longe e com tanto risco o alimento para a população da costa, Manoel me disse que os jangadeiros não recebiam nenhuma atenção do poder público. Ao cabo de alguns anos, quando sua jangada apodrece, é quase impossível, para eles, comprar uma nova embarcação. Tem que lutar só, orgulhosamente só, contra o mar e a pobreza.
    Manoel narrou-me a história, contada por seu pai, também jangadeiro, dos quatro pescadores que em 14 de setembro de 1941, saíram dali da Praia de Iracema, então chamada Praia do Peixe, e durante dois meses navegaram de jangada até chegar ao Rio de Janeiro, onde foram recebidos pelo presidente Getúlio Vargas. Disse-me, com orgulho, que aquela arriscada aventura, comandada por um grande amigo de seu pai, um jangadeiro de apelido Jacaré, deu muita fama aos jangadeiros cearenses e que os norte-americanos contaram a história dos “quatro homens e uma jangada” na revista Time, e que o ator Orson Welles fez um filme sobre a viagem. Que estranho, ouvir um homem simples como era, me falar do grande cineasta e me contar que era moleque quando  Welles apareceu em Fortaleza e que ele era um “gringo” muito dado e que vivia nos bares tomando cachaça com os pescadores. 
(..)
Vaqueiros em barro de Vitalino Leila
 
O vaqueiro
      O nordeste brasileiro, em todos os sentidos, é uma região de contrastes. A estreita faixa costeira, que se estende da Bahia até o Pernambuco traz ainda o trauma ambiental do ciclo da cana-de-açúcar cuja monocultura, nos séculos XVI e XVII, devastou a Mata Atlântica transformando parte da região em grandes e áridas savanas. Mas sempre subindo, rumo ao norte, pude ver zonas de vegetação abundante, regadas por chuvas que caem durante todo o ano e constantemente refrescadas pela brisa acariciante dos ventos alísios. Dizem os geógrafos que o clima da região, tropical e úmido, é um dos mais agradáveis do planeta. Contudo o seu interior é quase um deserto onde, a maior parte do ano, a região é assolada pelo fenômeno anual de uma prolongada seca e por um calor abrasador. Depois de alguns dias em Teresina, segui para Floriano, a segunda cidade no estado do Piauí, levado pelo interesse jornalístico em conhecer os trabalhos de represamento da Hidroelétrica de Boa Esperança, uma obra de fundamental importância para o desenvolvimento da região, em construção no Rio Parnaíba cujas águas dividem o Piauí do Maranhão.  Voltei ao cabo de alguns dias à Capital para dali retomar o caminho para o sul. Essa era uma etapa da viagem que eu vinha aguardando com ansiedade para poder penetrar na intimidade do sertão do nordeste. Conhecer, enfim, aquele mundo onde somente os fortes podiam sobreviver.
      Às três horas da tarde o calor era insuportável, Estava empapado de suor e a sede me chegava até as entranhas.  No meio daquelas paragens desoladas, onde muito raramente, naquela época, se cruzava com outro veículo, parei o carro e tirei a roupa.  Abri a mala, vesti um short e segui rumo a Araripina. Começava, finalmente, minha viagem pelo coração do nordeste brasileiro. As estradas do interior eram péssimas e cheias de ondulações paralelas parecendo, literalmente, com uma tábua de lavar roupa. Não tive outra alternativa senão ir baixando a calibragem, amolecendo os pneus até dez libras. Às vezes há um rio cortando seu trajeto. Normalmente são rios de curso temporário e, quando não estão totalmente secos, para cruzá-los há que seguir os garotos que, por alguns centavos, se metem na água e caminhando adiante do veículo vão indicando o vau ao condutor. Naquela época, pela a ausência de pontes, o interior do estado do Piauí, o mais pobre do Brasil, foi onde me deparei, por muitas vezes, com essas  travessias.  Entre os rios secos havia um mais profundo e, com a chegada das chuvas, deveria correr em violento turbilhão inundando o imenso vale. Havia um pontilhão semi-destruído e impedido e para cruzar descia-se uns quatro metros e andava-se mais uns vinte pelo lado direito das estacas do pontilhão para deixar o leito seco por uma subida íngreme e pedregosa. Supus que por ali não subiria um caminhão e era estranho imaginar aqueles barrancos cobertos pelas águas de um curso poderoso e apressado em busca do mar longínquo. Lembro-me de uma passagem semelhante no romance Os Rios Profundos, do peruano José Maria Arguedas. Ernesto, o personagem, narra:
 
a enchente desses rios andinos de regime imprevisível; tão secos, tão pedregosos, tão humildes e vazios durante anos, e em algum verão encoberto, ao precipitarem-se as nuvens, incham-se de uma água impetuosa e se tornam profundos;  detêm o caminhante, despertam em seu coração e em sua mente meditações e temores desconhecidos”[1]
      A cada quatro léguas aparecia uma casinha na beira da estrada. Lá a medida das distâncias era a légua e a légua tem cinco quilômetros. Era um quadro que se repetia invariavelmente: uma cabana de palha, uma mulher na porta com uma criança no colo e, na frente da casa, três ou quatro crianças, seminuas, magérrimas e com a barriga inchada pelas lombrigas.
       A certa altura do caminho, um homem de meia idade me fez um sinal de parada. Parei um pouco adiante e pelo retrovisor o vi correndo no meio da poeira. Cumprimentou-me com um sorriso sem dentes e com essa reverência e simplicidade com que a gente do campo saúda os forasteiros, pedindo se eu podia lhe “dar uma passagem” até um povoado próximo.
--Está a uma légua daqui --- disse-me ele. Contudo uma légua para um sertanejo é, na realidade, mais de duas. Acostumado às grandes distâncias e a dispor de um longo  tempo para tudo, o seu sentido de espaço e duração é sempre relativo. Dir-se-ia que ele, tal como o jangadeiro em alto mar, vive num tempo mágico, naquele sentido de duração do tempo que permanece, fora do tempo linear e contínuo do relógio. E, no entanto, quando começa a “filosofar” sobre as coisas da vida, tem um sentido muito especial de exatidão e praticidade, expressadas através dessa sabedoria das parábolas e provérbios que a natureza mesma o ensina. Com o tempo percebi que o sertanejo do nordeste dificilmente usa conceitos abstratos e adjetivos para realçar a importância ou a beleza de alguma coisa. Fala com essa linguagem das coisas do seu dia a dia, com a  força telúrica das palavras que muitas vezes se aproxima da poesia. Os seus poetas retratam essa beleza na literatura de cordel e em músicas que ficaram famosas no Brasil como Assum preto de Luiz Gonzaga, quando canta que “Tudo em volta é só beleza/ céu de anil e a mata em flor”, e nos versos de Mucuripe, aquela canção de Belchior que expressa, com o mais rico  lirismo, a vida camponesa, descrevendo, em quatro versos, a trajetória da semente, da flor e da fibra, colhida, tecida e transformada em traje:
 
         (…) “Calça nova de riscado
                   paletó de linho branco
                   que até o mês passado
                   lá no campo ainda era flor” (…)
      Conversámos longamente durante todo o caminho. Curioso, por formar um perfil daquele povo do sertão, fiz-lhe muitas perguntas. Disse-me que era um camponês e  trabalhava perto dali. Que sua jornada de trabalho começava às seis horas da manhã e só terminava quando o sol se punha. Recebia um cruzeiro por dia de trabalho e, descontados os domingos e feriados, seu salário mensal se aproximava de vinte e cinco cruzeiros. Contou que trabalhava por temporadas em determinadas fazendas, mas a maioria dos camponeses da região vivia na terra do patrão e, como eram arrendatários, tinham que lhe dar a metade da produção. Além disso, tinham que trabalhar, gratuitamente, alguns dias da semana nos campos do patrão e  não podiam abandonar a fazenda para trabalhar em outras partes. Quando chegamos ao povoado, partilhámos uma cerveja e ao nos despedir perguntou quanto me devia pela “passagem”. Esqueci seu nome, mas lembro ainda da sinceridade com que falava e, sobretudo, da sua conduta respeitosa. Semi-analfabeto, filho da miséria e da desesperança, aquele camponês era apenas um dos milhares e milhares de explorados pelos “coronéis” da região.
      A estrada que, naquele tempo, levava do Piauí ao estado do Bahia era pleno sertão, era a caatinga. O sertão é a caatinga e a caatinga é uma capa de arbustos baixos, retorcidos, de aspecto seco e agreste, às vezes tupidos, às vezes escassos. O solo é pedregoso, difícil e desnudo. A temperatura, que durante o dia pode passar de 40 graus, refresca com o cair da noite e esfria de madrugada. Para o sertanejo só existem duas estações no ano. O inverno é chuva e o verão é seca. Nas épocas de seca prolongada o gado morre, as colheitas perdem-se e, quando se perdem as últimas esperanças de  chuva, vê-se obrigado a deixar o pouco que tem e a emigrar para a costa ou então a empreender uma imensa viagem para o sul. Nela participam famílias inteiras e, às vezes, povoações inteiras que emigram trazendo consigo as vacas, galinhas, cavalos, cachorros, quadros, imagens de santos, objetos de estima, utensílios domésticos, móveis, enfim, quase todos os seus pertences. O romance, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é um comovente retrato desse drama. Desde menino, eu sempre ouvia, no sul do país, as histórias dessas grandes peregrinações que chegavam a durar muitos meses  e se transformavam em verdadeiras epopeias. Para o nordestino o sul era a região da abundância, dos vales férteis e húmidos e das cidades gigantescas que eles durante toda a sua vida ouviram falar. Todo nordestino sonhava chegar ao sul um dia. O sul era a sua Canaã, a sua Terra Prometida. E, no entanto, seu coração estará sempre atado, entranhavelmente atado, à sua própria terra. No Brasil de então era muito comum ouvir canções que contam a história dos “paus-de-arara” que chegaram a São Paulo, penaram a princípio, trabalharam em muitas profissões, muitos se alfabetizaram ou aprimoraram as bases dos seus estudos, depois se casaram e, com o nascer dos filhos, foram criando fortes raízes na nova sociedade; contudo, seu sonho é poder voltar um dia ao seu “cariri”, ao inesquecível rincão onde nasceram."
Manoel de Andrade, in Nos rastros da Utopia, uma memória crítica da América Latina, nos anos 70, Escrituras Editora, São Paulo , Brasil, 2014, pp.36-45
 
[1]-Arguedas, José Maria. Os rios profundos; trad. Glória Rodríguez. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 100

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