III – O tempo dos
afectos
“De pequeno não me lembro de mim, mas lembro-me dum ser extasiado, que abria os olhos atónitos para o mundo, todo frenesi e paixão...”Raul Brandão, Memórias
(...) A minha família completou-se definitivamente, com o
nascimento do meu irmão mais novo. Nasceu
em Setembro, no último dia de férias, na praia
onde passávamos férias.
Nesse ano, regressámos mais tarde à quinta.
Acabámos por ter férias prolongadas. Recordo perfeitamente este nascimento,
embora ele tenha nascido durante a noite. Sei que acordei e vi uma das salas
iluminada. Curiosa e inquieta, resolvi ir investigar o que se passava.
Na sala, estavam a minha tia Chi, irmã de meu
pai, e a sobrinha mais velha, a Lai,
filha do meu tio Eduardo, um dos irmãos de meu pai e meu padrinho. Na minha
cabeça, tanta gente acordada, foi uma confusão , embora eu nunca acordasse durante a noite. Dormia encantada a noite
inteira, como convinha a uma criança feliz.
Ao verem-me, meia estremunhada, esfregando os olhos
devido ao brilho agressor das luzes,
levantaram-se e vieram buscar-me.
Então, com muito carinho, e naquele jeito, que os adultos compõem para
darem as notícias às crianças, informaram-me do nascimento do meu irmão. Não
sei bem o que senti. Dizem que bati palmas e que logo me pediram para não fazer
barulho para ele não acordar.
Fui pé ante pé, em procissão, com algumas recomendações até ao quarto dos meus pais. A minha mãe estava
deitada. Olhava-me e acenava-me para que me aproximasse. Num bercinho, junto
dela, lá estava o meu irmão. Lindo, de rosto redondinho, parecia um daqueles
bonecos que o meu pai nos trazia de Espanha. Fiquei muito quietinha junto às
grades a observá-lo. Ele dormia e dormia.
Naquele momento, senti-me muito importante: era a
primeira de todos a conhecer o nosso novo irmão. E não sei por que razão fiquei
convencida de que ele sabia dessa proeza.
Não é que acordou passados alguns segundos e , simulando olhar para mim, lançou-me
aquele doce sorriso que me cativaria
para sempre . (Ainda hoje, o meu irmão mais novo tem um sorriso doce.)
Maria José Vieira de Sousa, in " O livro que já escrevi", pp. 27, 28
Belo texto
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