"Tenho corpo, mas sou corpo. Eu sou um corpo que diz 'eu' e, portanto, vivo-me a mim mesmo por dentro como corpo-sujeito, corpo-pessoa. (...) O Homem transcende o simplesmente biológico. 'Começou a ser Homem intentando criar beleza', escreveu Pedro Laín Entralgo. E vive do gratuito: cria e contempla a beleza, é o ser 'criativamente possuído pelo fascinante esplendor do inútil' (G. Steiner)."
O Homem: questão para si mesmo. 6
A tensão de um corpo-pessoa
por Anselmo Borges
6. A tensão de um corpo-pessoa
Raramente alguém disse de modo tão
realista o ser humano na sua tensão como Vergílio Ferreira neste texto
magnífico: “Um corpo e o que em obra superior ele produz. Como é fascinante
pensá-lo. Um novelo de tripas, de sebo, de matéria viscosa e repelente, um
incansável produtor de lixo. Uma podridão insofrida, impaciente de se
manifestar, de rebentar o que a trava, sustida a custo a toda a hora para a
decência do convívio, um equilíbrio difícil em dois pés precários, uma latrina
ambulante, um saco de esterco. E simultaneamente, na visibilidade disso, a
harmonia de uma face, a sua possível beleza e sobretudo o prodígio de uma
palavra, uma ideia, um gesto, uma obra de arte. Construir o máximo da
sublimidade sobre o mais baixo e vil e asqueroso. Um homem. Dá vontade de
chorar. De alegria, de ternura, de compaixão. Dá vontade de enlouquecer.”
O Homem vive-se a si mesmo numa tensão
insuperável.
Por um lado, o corpo é o seu peso, a
sua limitação – parece que, se fôssemos espírito puro, poderíamos, por exemplo,
estar em todo o lado. Com o tempo, o corpo decai, envelhece e, aparentemente,
envilece-nos. Adoecemos e desmoronamo-nos. Depois, com a morte, o que resta do
corpo é lixo biológico e coisa que apodrece. Referindo-se ao nascimento, Santo
Agostinho, nada exaltado, tem estas palavras cruas: “inter faeces et urinam
nascimur”, nascemos entre fezes e urina. E, aqui, faço uma observação fundamental:
ele usa a passiva para o nascimento: nascimur (somos nascidos). Em português,
usamos a activa: nascemos, nasci, outras línguas usam a passiva: natus sum, soy
nacido, suis né, bin geboren, am born, sono nato... De facto, alguém se lembra
do seu nascimento e decidiu nascer? Foi muito, muito lentamente que fomos dando
conta de nós até tomarmos consciência de nós como um “eu” — é isso:
afirmamo-nos, assentes numa passividade originária.
Por outro lado, será sempre misterioso
um corpo que fala: produz sons que encarnam e transmitem sentido. Um olhar é
sempre a visita do in-finito. Um corpo humano canta, ora, sorri, produz obras
de arte, que param o tempo e visibilizam a transcendência. De um bloco de
mármore Miguel Ângelo arranca a “Pietà”; misturando tintas, Van Gogh põe à
vista as “Botas com atacadores” e Leonardo, a “Última Ceia”. Com instrumentos
de sopro, de percussão e de cordas e vozes, corpos executam música, a mais
utópica das artes (E. Bloch), que nos leva lá para onde nunca estivemos, mas
aonde queremos sempre voltar de novo.
Um corpo humano desabrocha como alguém
perante outro alguém. Quando dois corpos humanos se abraçam são duas pessoas
que dizem uma à outra quanto se querem bem. E mais uma vez Vergílio Ferreira,
exprimindo a vivência do corpo pessoal e interpessoal: “Mónica, minha querida.
Porque o teu corpo não é só o teu corpo. Não é isso, não é isso. É entrar em
ti, e a tua pessoa estar lá.”
E o corpo humano é um corpo livre, que
não se entende como se fosse uma máquina nem na simples continuidade da
explicação biológica. É um corpo capaz de dizer não ao que a biologia pede – é
um asceta da vida, não fica submerso nas suas necessidades. Então, exprime
liberdade. E a liberdade é o salto milagroso. Kant escreveu que é impossível
compreender a produção de um ser dotado de liberdade por uma operação física,
sendo mesmo difícil, se não impossível também, compreender como pode o próprio
Deus criar seres livres.
Por isso, o materialismo mecânico ou
biológico não dá conta do Homem. Mas quem defender uma concepção dualista de
Homem – um composto de alma e corpo, matéria e espírito – terá de responder à
pergunta daquela criança de uma estória ingénua: diante do cadáver da avó, o
miúdo perguntou à mãe o que é que estava a acontecer. A mãe foi-lhe explicando
que a avó tinha morrido e que a alma dela tinha ido para Deus e o corpo ia para
a terra. Quando ela própria morresse, também ia ser assim: a alma iria para
Deus e o corpo para o cemitério. E continuou, angustiada: “Sabes, meu filho,
quando tu morreres, a tua alma vai ter com Deus e o teu corpo fica no
cemitério”. Aí, o miúdo observou, perplexo: “A minha alma vai ter com Deus e o
meu corpo vai para o cemitério. E eu?”
Há o corpo fisiológico, anatómico –
quando vou ao médico, espero que perceba de anatomia. Mas também há o corpo
fora da anatomia – quando vou ao médico, espero que me trate como pessoa e não
como simples corpo, à maneira de máquina desarranjada que ele como técnico
especializado vai recompor. Tenho corpo, mas sou corpo. Eu sou um corpo que diz
“eu” e, portanto, vivo-me a mim mesmo por dentro como corpo-sujeito,
corpo-pessoa. E também os outros, todos os outros são corpo-pessoa, vivendo-se
a si mesmos como sujeitos. O Homem transcende o simplesmente biológico.
“Começou a ser Homem intentando criar beleza”, escreveu Pedro Laín Entralgo. E
vive do gratuito: cria e contempla a beleza, é o ser “criativamente possuído
pelo fascinante esplendor do inútil” (G. Steiner). Para sobreviver, não
precisava de investigar na mecânica quântica... O que ganha no tempo dedicado
aos mortos? No entanto, o tempo que gastamos inutilmente — inutilmente? —com os
mortos!...
Ser Homem é viver esta tensão, numa
arte quase impossível. Porque permanentemente espreita o perigo de coisificar o
corpo ou de desprezá-lo, refugiando-se num idealismo angélico. Mas já Pascal
preveniu: “O Homem não é anjo nem é besta, e, desgraçadamente, quem quer fazer
de anjo faz de besta.”
Anselmo Borges, Padre e professor de Filosofia , em Artigo
publicado no DN de 14 de Setembro de
2024
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