sexta-feira, 14 de julho de 2023

O tempo dos afectos

 

III – O tempo dos afectos
 
“De pequeno não me lembro de mim, mas lembro-me dum ser extasiado, que abria os olhos atónitos para o mundo, todo frenesi e paixão, e de dois ou três companheiros de infância que se entranharam comigo, passo e passo, e com o mesmo espanto, no ser azul, verde , magnético que nos rodeia.”
Raul Brandão, in  Memórias
 
No nosso passado, há sempre um tempo feliz. Tempo que nos permite invocar com delícia antecipada. Vivemo-lo e foi nosso . Faz parte da nossa história, da nossa narrativa, como gostam de dizer os pseudo e ilustres comentadores de tout fait divers da actualidade.
Pois, não havia narrativa, no meu tempo de infância. Havia crianças e um mundo prodigioso a descobrir. Foi o meu tempo mais feliz. Tinha tudo o que é necessário:  uma casa, uma família numerosa com muitos irmãos ,  um espaço deslumbrante repleto de mistérios,  de convites ao sonho e à fantasia , num horizonte onde crescia a liberdade e muito , muito afecto.
Como não ser feliz , nesse tempo  longínquo dos anos cinquenta do século XX. No tempo em que cada família procurava um destino maior do  que aquele que coubera à geração anterior. Nesse tempo de pós-guerra ,  a segunda grande guerra terminara há poucos anos,  e deixara nas mentes a ideia urgente de um novo mundo  a reconstruir onde se  recentrassem os afectos , a generosidade se praticasse e a misericórdia fosse sentida.
Viver numa quinta, localizada numa vila remota e viçosa  do Portugal nortenho, foi o maior prémio dos meus primeiros anos. Soube, mais tarde , que foi o cimento inaugural dos alicerces daquilo que veio a ser a minha vida.
A minha família completou-se definitivamente, com o nascimento do meu irmão mais novo. Nasceu em Setembro, no último dia de férias, na praia  onde passávamos férias.
Nesse ano, regressámos mais tarde à quinta. Acabámos por ter férias prolongadas. Recordo perfeitamente este nascimento, embora ele tenha nascido durante a noite. Sei que acordei e vi uma das salas iluminada. Curiosa e inquieta, resolvi ir investigar o que se passava.
Na sala, estavam a minha tia Chi, irmã de meu pai,  e a sobrinha mais velha, a Lai, filha do meu tio Eduardo, um dos irmãos de meu pai e meu padrinho. Na minha cabeça, tanta gente acordada foi uma confusão , embora eu nunca acordasse  durante a noite. Dormia encantada a noite inteira, como convinha a uma criança feliz.
Ao verem-me, meia estremunhada, esfregando os olhos devido ao brilho agressor das luzes,  levantaram-se e vieram buscar-me.  Então, com muito carinho, e naquele jeito, que os adultos compõem para darem as notícias às crianças, informaram-me do nascimento do meu irmão. Não sei bem o que senti. Dizem que bati palmas e que logo me pediram para não fazer barulho para ele não acordar.
Fui pé ante pé, em procissão, com algumas recomendações  até ao quarto dos meus pais. A minha mãe estava deitada. Olhava-me e acenava-me para que me aproximasse. Num bercinho, junto dela, lá estava o meu irmão. Lindo, de rosto redondinho, parecia um daqueles bonecos que o meu pai nos trazia de Espanha. Fiquei muito quietinha junto às grades a observá-lo. Ele dormia e dormia.
Naquele momento, senti-me muito importante: era a primeira de todos a conhecer o nosso novo irmão. E não sei por que razão fiquei convencida de que ele sabia dessa proeza.  Não é que acordou passados alguns segundos e ,  simulando  olhar para mim, lançou-me  aquele  doce sorriso que me cativaria para sempre . (Ainda hoje, o meu irmão mais novo tem um sorriso doce.)
(...)
Há quem tenha afirmado que «escrever é ir ao encontro do que nos comove, intriga ou indigna, de tudo aquilo que afinal nos chama porque nos é próximo ou, pelo contrário, suscita a nossa curiosidade porque se filia num passado feito de outros cenários e recordações. Em definitivo, toda a memória é sempre memória dos outros.»
Maria José Vieira de Sousa, in " O livro que já escrevi".pp. 27, 28, 29

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