O meu vizinho José Matoso
por Eugénio Lisboa
“Durante alguns meses, o historiador José Matoso, já então coberto de justa glória, mas tendo deixado de escrever, devido à Parkinson, que o afligia, já em estado de algum avanço, foi meu vizinho, aqui em S. Pedro do Estoril. O seu apartamento ficava do outro lado da rua, mesmo em frente ao meu. Mas onde coincidíamos era no restaurante, com frente para o mar, a dois passos dos nossos apartamentos. Nele oficiava (e ainda oficia) o Sr. Soares, sempre atencioso, cavalheiresco e amistoso, mas discreto. Uma verdadeira mais valia para o burgo e , em especial, para os seus assíduos clientes.
Da primeira vez que lá vi José Matoso, logo o reconheci: a sua figura austera mas não inamistosa era inconfundível. Fiquei num dilema: gostaria de lhe falar, por todas as razões, mas até para lhe dar as boas vindas de vizinho. Mas fui sempre tímido, no que diz respeito a aproximar-me de gente famosa, não fosse isso parecer-se com incómoda bajulação. Mas José Matoso, na sua grande simplicidade, facilitou-me as coisas: foi ele quem se aproximou de mim, perguntando se podíamos almoçar à mesma mesa. Disse-lhe que seria, para mim, um privilégio. Mostrou conhecer-me e eu nem precisei de dizer que o conhecia… E começámos a nossa conversa, que se prolongou por inúmeros almoços, até que um dia ele desapareceu – levado, disseram-me, por um familiar, para ser melhor cuidado.
José Matoso recortou, no período do nosso convívio, a figura inesquecível de um homem de uma simplicidade natural, que nenhum prestígio pessoal seria capaz de corromper. Para ele, ser simples e humilde, era como respirar. Embora evidenciasse, por essa altura, uma certa dificuldade em articular, com clareza, as palavras, prosseguia, com galhardo empenho, a conversa. Quando queria saber ou compreender, perguntava, com aquela inocência pura das crianças. Nunca o vi puxar pelos galões do seu imenso valor e prestígio, como grande historiador. Era um sábio que não sabia ser uma prima-dona. Infundia respeito sem infundir distância. O seu modo de falar, sereno, suavemente probatório, recordava-me o grande Físico Niels Bohr, o qual avisava que tudo quanto ele dissesse devia ser tido como uma pergunta e não como uma afirmação.
Quando José Matoso me questionava sobre qualquer livro, eu confesso que receava sempre dar-lhe uma resposta demasiado assertiva, mesmo quando me apetecia muito fazê-lo. A trapacice sempre me induziu mau sangue, mas, diante da serenidade budista daquele sábio, sentia-me inibido.
Ao saber agora do seu falecimento, há muito esperado, senti, como em poucos casos, que se tratava de uma perda. Ficam as obras, os discípulos e os sempre necessários opositores.
Um enorme legado.”
Eugénio Lisboa, em 13.07. 2023
por Eugénio Lisboa
“Durante alguns meses, o historiador José Matoso, já então coberto de justa glória, mas tendo deixado de escrever, devido à Parkinson, que o afligia, já em estado de algum avanço, foi meu vizinho, aqui em S. Pedro do Estoril. O seu apartamento ficava do outro lado da rua, mesmo em frente ao meu. Mas onde coincidíamos era no restaurante, com frente para o mar, a dois passos dos nossos apartamentos. Nele oficiava (e ainda oficia) o Sr. Soares, sempre atencioso, cavalheiresco e amistoso, mas discreto. Uma verdadeira mais valia para o burgo e , em especial, para os seus assíduos clientes.
Da primeira vez que lá vi José Matoso, logo o reconheci: a sua figura austera mas não inamistosa era inconfundível. Fiquei num dilema: gostaria de lhe falar, por todas as razões, mas até para lhe dar as boas vindas de vizinho. Mas fui sempre tímido, no que diz respeito a aproximar-me de gente famosa, não fosse isso parecer-se com incómoda bajulação. Mas José Matoso, na sua grande simplicidade, facilitou-me as coisas: foi ele quem se aproximou de mim, perguntando se podíamos almoçar à mesma mesa. Disse-lhe que seria, para mim, um privilégio. Mostrou conhecer-me e eu nem precisei de dizer que o conhecia… E começámos a nossa conversa, que se prolongou por inúmeros almoços, até que um dia ele desapareceu – levado, disseram-me, por um familiar, para ser melhor cuidado.
José Matoso recortou, no período do nosso convívio, a figura inesquecível de um homem de uma simplicidade natural, que nenhum prestígio pessoal seria capaz de corromper. Para ele, ser simples e humilde, era como respirar. Embora evidenciasse, por essa altura, uma certa dificuldade em articular, com clareza, as palavras, prosseguia, com galhardo empenho, a conversa. Quando queria saber ou compreender, perguntava, com aquela inocência pura das crianças. Nunca o vi puxar pelos galões do seu imenso valor e prestígio, como grande historiador. Era um sábio que não sabia ser uma prima-dona. Infundia respeito sem infundir distância. O seu modo de falar, sereno, suavemente probatório, recordava-me o grande Físico Niels Bohr, o qual avisava que tudo quanto ele dissesse devia ser tido como uma pergunta e não como uma afirmação.
Quando José Matoso me questionava sobre qualquer livro, eu confesso que receava sempre dar-lhe uma resposta demasiado assertiva, mesmo quando me apetecia muito fazê-lo. A trapacice sempre me induziu mau sangue, mas, diante da serenidade budista daquele sábio, sentia-me inibido.
Ao saber agora do seu falecimento, há muito esperado, senti, como em poucos casos, que se tratava de uma perda. Ficam as obras, os discípulos e os sempre necessários opositores.
Um enorme legado.”
Eugénio Lisboa, em 13.07. 2023
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