José Mattoso publicou, em 2012, o livro “Levantar o Céu – Os Labirintos da Sabedoria”, recolha de textos de intervenção cívica e espiritual da sua autoria, editado pela “Temas e Debates / Círculo de Leitores”.
Este
livro foi pretexto para duas entrevistas ao “Público” e ao “Jornal de Letras”,
conduzidas por António Marujo e Maria Leonor Nunes, esta por correio
electrónico, de que publicamos alguns excertos.
«Ignorada
pela alta finança, ofendida pelos políticos, agredida pela maioria da
comunicação social, ameaçada pela cegueira da violência, desejada e praticada
por muitos pobres, fracos e oprimidos, ameaçada pelos senhores da técnica,
cultivada pelos místicos e contemplativos, esperança dos verdadeiros crentes de
todas as religiões, aliada dos que respeitam a Natureza, sustentada pelos que
buscam a beleza e a arte – a sabedoria está um pouco por toda a parte. Mas
ninguém a vê.»
«A
sabedoria vive no labirinto do mundo contemporâneo justamente por se esconder
sob muitas formas. É ignorada por muitos que julgam possuí-la. Acredita na
eficácia dos pequenos passos. Confia mais na qualidade do que na quantidade.
Confere o dom de superar a contradição (o céu e a terra, o bom e o mau, o forte
e o fraco, o pequeno e o grande). Sabe esperar a sua vez. Permanece e
multiplica-se de forma incompreensível.»
«Apesar
da sua fraqueza [a sabedoria] é o antídoto mais poderoso contra a angústia que
nos causa um mundo à beira do colapso. É ela que nos ensina o que é importante
e o que é secundário.»
«A
ameaça do colapso da nossa civilização é real. O espectro do desemprego ou o da
paralisação universal causada pela escassez da energia e da água, por exemplo,
espalha por toda a parte o medo do futuro. Todos perguntamos como iremos
atravessar a “crise”. Revoltamo-nos, com razão, por os seus responsáveis serem
os menos afetados, e termos nós de a pagar. Mas é preciso defender a Vida.
Lutar contra a morte. A sabedoria ensina-nos a sobreviver, a procurar a alegria
e a verdade com os meios que temos, e não pede nada por isso.»
«Um
dos mais graves problemas do mundo contemporâneo é a crise dos valores. É uma
das consequências da perda de noção de “sagrado”. Sem o seu apoio é impossível
justificar o respeito por valores intangíveis. Abre-se a Porta ao arbitrário, à
irresponsabilidade, à espiral da Laranja Mecânica. A noção de “sagrado” é de
natureza religiosa. mas nada impede que seja recuperada por uma civilização
secularizada.»
«A minha proposta de “levantar o céu” tem
subjacente a ideia de que é preciso temperar ou equilibrar o materialismo
contemporâneo por meio de uma espiritualidade que pode envolver todas as
manifestações da vida humana. A metáfora do caminho labiríntico que é preciso
percorrer para encontrar a sabedoria do entender e do agir alude, de facto, à
atual ambiguidade e reversibilidade de toda a linguagem, de toda a obra humana
e de todas as ações, e à necessidade de superar as suas contradições. Tanto um
conceito como o outro aludem a uma conciliação dos opostos que a civilização
ocidental esqueceu, mas está bem viva na sabedoria oriental.»
«Podemos
ter uma atitude política, tentar intervir na realidade. Mas, se não formos
conduzidos pela fé, o realismo leva-nos a desistir. O cristão tem possibilidade
de se livrar dessa fatalidade na sua relação com o céu. Na metáfora que
utilizo, levantar o céu, é trazer a terra ao encontro do céu.
Aí, não estamos sós. Temos a intervenção de Deus, temos a fé na redenção, no
perdão dos pecados, no valor do sofrimento, na abnegação, na bondade... Temos
também a fé na cultura, na inspiração extraordinária dos grandes artistas, que
alcançam níveis fantásticos de captação da bondade, da beleza do mundo. E temos
a renovação constante da vida: se há um incêndio numa mata, vemos daí a pouco
aparecerem as flores, as ervas. A vida não desiste de se reproduzir, de
envolver a realidade.»
«Quando
falo em levantar o céu, é todo o universo, são realidades espirituais, a arte,
mesmo a que não tem nada que ver com a religião, porque representa uma forma de
melhorar o ser. O ser é sempre parcialmente realizado. Ao falar na beleza, não
se pressupõe que ela não possa conter também alguma coisa de fealdade. Os
antagonismos, fundamento do pensamento ocidental, em que se baseia a visão da
realidade, são muitas vezes parciais.»
«[Creio
que é possível a coexistência da sabedoria, razão e fé,] contanto que a razão
não prevaleça sobre a sabedoria e a fé. Mas a razão é fundamental. A formulação
teológica do século XII, de São Tomás de Aquino e da teologia escolástica, é a
demonstração mais categórica da capacidade de conciliar a fé com a razão. Isso
representa um progresso enorme na compreensão da mensagem evangélica. Portanto,
não há uma oposição inconciliável. O pietismo, uma devoção sentimental que é
por vezes a expressão de um culto popular, precisa da reflexão racional para se
tornar aceitável.
Em Portugal, não se cultivou suficientemente a teologia, na sua expressão
plena. Não há uma tradição de estudos teológicos suficientemente válidos do
ponto de vista racional, para poder responder a um anticlericalismo primário e
cego que existiu em Portugal no século XIX e grande parte do século XX.»
«A
bondade pode ser praticada numa conceção laical, laicista mesmo. Não precisa de
ter nenhum sobrenatural por trás. Mas o cristão tem essa propensão, se a
cultivar. E tem o exemplo de Jesus Cristo que leva isso a um extremo que o
homem, só por si, não alcança.»
«A
realidade do ser humano implica o bem e o mal, como se conciliam, como entram
em relação um com o outro... Os livros que têm aparecido a negar a existência
de Deus dizem que, se Deus existisse, teria que intervir para que a maldade
humana não prevalecesse. A oposição inconciliável entre o bem e o mal leva a
negar a existência de Deus.
Qualquer pessoa que considere as coisas em termos de justiça e verifique o que
se passa no mundo ou a crueldade no Holocausto, diz: como é que Deus permite
isto, como é que estes homens fazem isto e quem sofre são as vítimas?
Para mim também é difícil aceitar esta realidade. Talvez seja numa visão de
totalidade, em que o bem não pode existir sem o mal, que se pode aceitar e
encontrar uma relação com o ser do homem. O ser implica também o ser mau.»
«Para
o homem de fé, é preciso aprofundar esta noção da sabedoria, que se baseia numa
experiência vivida e na meditação da palavra como fundadora da própria
realidade, de autenticidade dos conceitos e dos valores.»
«Que
estratégia a Igreja deveria seguir, para não perder o lugar que chegou a
alcançar?
Penso que é sobretudo na vivência do
Evangelho, na autenticidade da vida cristã. Não de uma forma pietista, mas de
forma autêntica, vivencial e esclarecida. Há uma grande quantidade de questões
que resultam da ignorância teológica pura e simples.»
«Os
cartuxos só admitem vocações até aos 40 anos, já tenho o dobro, não sei se
tenho capacidades de viver sozinho. Mas pelo menos queria, com a liberdade pessoal
suficiente e sem imposição de tempo, dedicar-me à oração. Mais do que isso:
dedicar-me a descobrir o valor da palavra, o autêntico significado da palavra,
no sentido de linguagem, de expressão da realidade, no sentido de logos.
Encontrar-me na meditação da palavra como expressão do mundo, da existência, da
história, e descobrir-lhe um sentido.»
António
Marujo, Maria Leonor Nunes,in Público / Jornal de Letras, 08.05.12
Sobre o livro, o próprio autor informa:
«Os textos aqui reunidos foram escritos ao sabor de solicitações variadas, a que tentei responder na medida das minhas possibilidades e segundo as minhas convicções pessoais. Uns são mais ‘cívicos’, outros mais espirituais; uns inspirados no senso comum, outros na mensagem evangélica; uns recorrem à História, outros a princípios intemporais. Qualquer que seja a linguagem e o pensamento que os inspira, pretendem todos contribuir em alguma coisa para ‘levantar o Céu’.»
«’Levantar o Céu’ é o nome que os mestres de chi kung (uma variante do tai chi) dão a um dos seus principais exercícios. Consiste, fisicamente, em levantar os braços em arco com as palmas das mãos apontadas uma para a outra e viradas para cima, isto é, para o ‘Céu’. Pouco importa a execução do exercício. Tomo-o como metáfora de uma atitude de vida que dá a primazia ao Céu, no sentido que a palavra tem, por um lado, na cultura chinesa, e, por outro, na nossa.»
«Que aconteceria se a Terra prevalecesse sobre o Céu, o yin sobre o yang, o egoísmo sobre a generosidade, a força sobre a beleza, a ignorância sobre a sabedoria, a violência sobre a persuasão?» – pergunta o pensador. E responde sem pessimismo, embora bem saiba, enquanto historiador, que o egoísmo vence a generosidade, que a força vence a beleza, que a ignorância vence a sabedoria, que a violência vence a persuasão – e vence desde sempre, desde que o mundo é mundo. Lampedusa lembrou-o de forma lapidar: «Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi.»
«Renunciando por completo a fazer contas, é bom acreditar que merece a pena ‘levantar o Céu’, e lembrarmo-nos de que não estamos sozinhos. Felizmente há muitas mulheres e homens neste mundo a tentar unir esforços para manter o contacto entre o Céu e a Terra. É esse o caminho que a sabedoria ensina a percorrer para encontrar a saída do labirinto em que a vida nos coloca.»
«Depois das esperanças de liberdade, de justiça, de democracia, de vitória sobre a exploração do homem pelo homem que nos animaram nos anos sessenta, e que nos nossos dias se dissiparam, voltou para muitos o sentimento da proximidade do fim dos tempos, mas não a esperança num mundo melhor.»
«Quem fala, hoje, em bem, beleza, justiça, liberdade, progresso, democracia, solidariedade, bem comum, autoridade, humanismo, solidariedade?»
«E se alguém fala de tais valores, quem se
deixa persuadir por tais discursos? Muito pelo contrário: julga-se que quem
mais invoca esses ideais é quem menos acredita neles.»
«A sabedoria não é uma doutrina, nem uma moral. É uma práxis.»
Sumário de «Levantar o Céu- Os labirintos da Sabedoria», Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2012, 290 páginas:
«A sabedoria não é uma doutrina, nem uma moral. É uma práxis.»
Sumário de «Levantar o Céu- Os labirintos da Sabedoria», Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2012, 290 páginas:
Introdução. Parte I – SABEDORIA E RAZÃO: A luta pelos
valores no fim do milénio. O poder judicial ontem e hoje. A morte das utopias e
o fim da História. O lugar da História. Eutrapelia. Desenvolvimento e
cidadania. As três religiões do Livro. Parte II – SABEDORIA E FÉ: Onde está a
sabedoria medieval? Olhares sobre o sagrado. «A Nuvem do Não-Saber».
Contemplação e Intercessão. Taciturnidade e silêncio. Contemplação e acção,
ontem e hoje. Sabedoria e fraternidade. A sabedoria. Viver e saber.
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