A
geometria do caos
por Arturo Pérez-Reverte
“Ivo Markovic continuava a olhar o
mar. Creio que tem razão, senhor Faulques, disse. Tem-na nisso das regras e das
riscas do tigre e das simetrias ocultas que de repente se manifestam, e uma
pessoa descobre que talvez tenham estado sempre ali, dispostas a
surpreender-nos. É verdade que qualquer pormenor pode mudar a vida: um caminho
que não se toma, por exemplo, ou que se demora a tomar por causa de uma
conversa, de um cigarro, de uma recordação.
- Na guerra, claro, tudo isso importa.
Uma mina que não se pisa por centímetros... Ou que se pisa...
(...)
- É possível que o acaso seja
equívoco, efectivamente (...). O que o fez escolher-me a mim e não a outro?
(...)
- Escolher, disse [Faulques].
- Sim.
- Dir-lhe-ei o que é escolher.
Então Faulques falou durante um bocado
- à sua maneira, entre pausas prolongadas e silêncios - de escolhas e de
acasos. Fê-lo referindo-se ao franco atirador junto de quem passara quatro
horas deitado no chão do terraço de um edifício de seis andares de onde se
dominava uma ampla vista de Sarajevo. O franco atirador era um sérvio-bósnio de
uns quarenta anos, magro e de olhos tranquilos, que cobrara a Faulques duzentos
marcos para o deixar ficar a seu lado enquanto disparava sobre as pessoas que
corriam a pé ou passavam a toda a velocidade de automóvel pela avenida Radomira
Putnika, na condição de o fotografar a ele e não à rua, para evitar que
localizassem a sua posição através do enquadramento. Conversaram em alemão
durante a vigília, enquanto Faulques brincava com as máquinas para que o outro
se habituasse a elas, e o seu interlocutor fumava um cigarro atrás do outro,
inclinando-se de vez em quando para dar uma vista de olhos atenta ao longo do
cano de uma espingarda SVD Dragunov, encaixada entre dois sacos de terra, onde
estava apoiada uma potente mira telescópica que apontava para a rua, através de
uma fresta estreita aberta na parede. Sem complexos, o sérvio tinha admitido
que disparava igualmente contra homens, mulheres ou crianças e Faulques não lhe
fez perguntas de índole moral, entre outras coisas porque não estava ali para
isso e também porque conhecia sobejamente - não era o seu primeiro
franco-atirador - os motivos simples pelos quais um homem com as doses
correctas de fanatismo, rancor ou desejo de lucro mercenário podia matar
indiscriminadamente. Fez perguntas técnicas, de profissional para profissional,
acerca de distâncias, campo de visão, influência do vento e da temperatura na
trajectória das balas. Explosivas, especificara o outro num tom de voz
objectivo. Capazes de fazer explodir uma cabeça como se fosse um melão sob um
martelo, ou de rebentar as entranhas com total eficácia. E como escolhes,
perguntou Faulques. Refiro-me a se disparas ao acaso ou seleccionas os alvos.
Então o sérvio expôs uma coisa interessante. Nisto não há acaso, explicou. Ou
havia muito pouco: o necessário para que alguém decidisse passar por ali no
momento certo. O resto era coisa sua. A alguns matava-os, a outros não. Tão
fácil como isso. Dependia da forma de andar, de correr, de parar. Da cor do
cabelo, dos gestos, da atitude. Das coisas a que os associava ao vê-los. No dia
anterior tinha estado a apontar para uma rapariguinha ao longo de quinze ou
vinte metros e, de repente, um gesto casual desta fê-lo pensar na sobrinha
pequena - nesse ponto o franco-atirador abriu a carteira e mostrou a Faulques
uma fotografia familiar. - De modo que não atirou sobre ela, escolhendo em
troca uma mulher que estava perto, debruçada a uma janela, quem sabe talvez à
espera de ver como matavam a rapariga que caminhava distraída e a descoberto.
Por essa razão dizia que isso do acaso era relativo. Havia sempre alguma coisa
que o fazia decidir-se por este ou por aquele, dificuldades operacionais à
parte, claro. Passava-se o mesmo com os condutores de automóveis em andamento:
às vezes deslocavam-se depressa de mais. De repente, a meio da explicação, o
franco-atirador ficara tenso, as suas feições pareceram definhar e as pupilas
contraíram-se enquanto se inclinava sobre a espingarda, ajustava a culatra ao
ombro, colava o olho direito ao visor e colocava suavemente o dedo no gatilho.
'Jagerei', sussurara no seu mau alemão, entre dentes, como se lá em baixo o
pudessem ouvir. Caça à vista. Decorreram alguns segundos enquanto a espingarda
descrevia um lento movimento circular para a esquerda. Depois, com um único
estampido, a culatra bateu-lhe no ombro e Faulques pôde fotografar o primeiro
plano daquela cara magra e tensa, com um olho semicerrado e o outro aberto, a
pele por barbear, os lábios apertados como uma linha implacável: um homem
qualquer, com os seus critérios selectivos, as suas recordações, antipatias e
inclinações, fotografado no momento exacto de matar. Bateu ainda uma segunda
chapa quando o franco-atirador afastou a cara da culatra da espingarda, olhou
para a objectiva da Leica com olhos gelados e, depois de beijar ao mesmo tempo os
três dedos da mão com que tinha disparado, polegar, indicador e médio, fez com
eles a saudação sérvia da vitória. Queres que te diga em quem acertei?,
perguntou. Porque escolhi este alvo e não outro? Faulques, que verificava a luz
com o fotómetro, não quis saber .A minha máquina não fotografou isso, disse,
logo não existe. Então o outro olhou para ele em silêncio durante algum tempo,
sorriu apenas, depois ficou sério e perguntou-lhe se há dois dias tinha passado
junto da ponte Masarikov ao volante de um Volkswagen branco com um vidro
partido e as palavras 'Press-Novinar' feitas com fita adesiva vermelha sobre o
capô. Faulques ficou imóvel por instantes, acabou de guardar o fotómetro no seu
saco de lona e respondeu com outra pergunta cuja resposta adivinhava. Então o
sérvio deu uma palmada leve na 'Zeiss' telescópica da sua espingarda. Porque te
tive, respondeu, nesta mira, durante quinze segundos. Restavam-me apenas duas
balas e, depois de pensar, disse para comigo: hoje não vou matar este 'glupan'.
Este tonto."
Arturo
Pérez-Reverte, in O
Pintor de Batalhas, Edições ASA, p.144-149
Sobre o llivro:"A história mais intensa e perturbadora da já longa carreira de Arturo Pérez-Reverte. Do Vietname ao Líbano, do Cambodja à Eritreia, de El Salvador à Nicarágua, de Angola e Moçambique aos Balcãs e ao Iraque… Depois de trinta anos a tirar fotografias em busca da imagem definitiva, do momento a um só tempo fugaz e eterno que explica tudo, o fotógrafo de guerra André Faulques substituiu a câmara pelos pincéis. Não conseguindo tirar a foto capaz de transmitir o caos do Universo, agora, enquanto tenta compreendê-lo, começa a pintar um grande fresco circular no muro de uma torre de vigia no Mediterrâneo, onde vive sozinho, perturbado pela memória de uma mulher que nunca conseguiu esquecer e pela visita inesperada de um homem que o quer matar. O homem é uma sombra do seu passado, uma das inúmeras faces da guerra com que ele ganhou a vida. Mas o poder da imagem vai muito além da sua existência física e, à medida que o romance avança, a história do artista e do soldado emerge, entrelaçada com uma história de amor condenada e o progresso de uma pintura impregnada de História. Deslumbrante do início ao fim, O Pintor de Batalhas arrasta o leitor e subjuga-o, através da complexa geometria do caos do século XX: a arte, a ciência, a guerra, o amor, a lucidez e a solidariedade combinam-se no vasto mural de um mundo que agoniza."
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