"A gente
habitua-se à noite, tanto quanto os pássaros acabam por habituar-se a viver nas
gaiolas suspensas das empenas. Se acontece de alguém erradamente os soltar,
conhecem apenas a tristeza de umas asas sem préstimo. Perderam o sentido da
orientação. Não sabem que as árvores servem para nelas pousarem. Remam no ar,
contra o vento, embatem em obstáculos súbitos e inevitáveis. Desconhecem um
mundo e recusam-se a aprendê-lo de novo. Cheios do tédio do infinito,
permanecem atónitos e dificilmente escapam às doenças que existem só nos
desertos. Se os não voltam a fechar nas gaiolas, morrem facilmente, perdidos da
alegria. E já não têm idade. E nada sabem a respeito dos outros pássaros de voo
largo e horizontal que, sendo livres, pousam tão devagar na alegria. Até medo
lhes ganham. Afigura-se-lhes que os objectos que eles se tinham habituado a
olhar à distância, por detrás da sua prisão de canas fictícias, estão agora
para os devorar.”
João
de Melo, in A Divina Miséria de Entre Pássaro e Anjo
, Publicações Dom Quixote, 1987, p.157
Este livro de contos foi galardoado com os prémios literários Grande Prémio do Romance e da Novela da
APE, Prémio Fernando Namora, Prémio Eça de Queiroz e Prémio Antena Um.
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