Julio Cortázar , escritor argentino (1914-1984) |
"Em Histórias de Cronópios e de Famas, Julio Cortázar vê o mundo com soberba ironia. Quer recuperar o sentido do humano, o amor pela travessura e pelo quotidiano. Descreve as pessoas em três grandes grupos: cronópios, famas e esperanças.
O autor lança um olhar puro sobre as coisas à sua volta, promovendo uma espécie de reinvenção do mundo. Os cronópios são os artistas, os poetas, criaturas verdes e húmidas, que gostam de cantar e recitar versos, mas muito distraídas, vivem perdendo o que têm nos bolsos, são atropeladas e choram. Os cronópios são também aqueles que estão alheios aos compromissos do quotidiano e às agruras da vida. Viajam nos seus pensamentos.
Os famas representam a vida prática. Muito diferentes, organizados e práticos, o que não impede que sejam os cronópios a sentirem por eles uma compaixão infinita. São os gestores, executivos, gerentes de banco.
Os esperanças são aqueles que passam em branco pela vida, são omissos, vivem a alegria do meio-termo e o drama das opiniões.
Histórias de Cronópios e de Famas é uma recompilação de 64 relatos curtos, repletos de sarcasmo e ironia que escondem reflexões filosóficas através de uma linguagem simples e clara. A obra está dividida em quatro partes. A primeira parte, da qual vamos apresentar quatro trechos, chama-se Manual de Instruções e é uma ridicularização de situações quotidianas e repetitivas, que nos obriga a reflectir sobre actos que consideramos habituais e aos quais, normalmente, não prestamos atenção
Uma obra de um intenso exercício literário, que reúne as principais características presentes em toda a obra cortaziana.
Instruções para chorar
Deixando de lado os motivos, vamos nos ater à maneira correcta de chorar, entendendo isso como um pranto que não se transforma em escândalo, nem que insulte o sorriso com sua paralela e lerda semelhança. O choro médio ou ordinário consiste numa contração geral do rosto e num som espasmódico, acompanhado de lágrimas e fungação, esse último no final, pois o choro acaba no momento em que alguém assoa o nariz energicamente.
Para chorar, dirija a sua imaginação para si mesmo e se isto acabar sendo impossível pelo hábito adquirido de acreditar num mundo exterior, pense num pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de Magalhães onde ninguém entra, nunca.
Chegando o choro, tapar o rosto com decoro usando ambas as mãos com a palma voltada para dentro. As crianças chorarão com a manga do casaco contra o rosto e, de preferência, num canto do quarto. Duração média do choro, três minutos.
Instruções para cantar
Comece quebrando os espelhos de sua casa, deixe os braços caírem, olhe vagamente para a parede, esqueça. Cante apenas uma nota, escute por dentro. Se ouvir (mas isso ocorrerá muito depois) algo como uma paisagem desaparecida no medo, com fogueiras entre pedras, com silhuetas seminuas de cócoras, acredito que estará bem encaminhado, assim como se ouvir um rio por onde descem botes pintados de amarelo e preto, se ouvir um gosto de pão, um toque de dedos, uma sombra de cavalo.
Depois, compre cadernos de solfejos e um fraque, por favor não cante pelo nariz, e deixe Schumann em paz.
Instruções-exemplos sobre a forma de sentir
medo
Numa aldeia da Escócia vendem-se livros com uma página em branco perdida
em algum lugar do volume. Se o leitor desembocar nessa página ao soarem as
três da tarde, morre.
Na praça do Quirinal, em Roma, há um lugar conhecido pelos iniciados até
o século XIX e do qual, em noites de lua cheia, vêem-se mexer lentamente as
estátuas dos Dióscuros que lutam com seus cavalos empinados. Em Amalfi, no
fim da zona costeira, há um dique que penetra pelo mar e pela noite. Ouve-se um
cão latir para além do último farol. Um senhor está pondo pasta de dentes na
escova. De repente, vê, deitada de costas, uma diminuta imagem de mulher,
feita de coral ou talvez de miolo de pão pintado.
Ao abrir o armário para apanhar uma camisa, cai um antigo calendário que se
desmancha, se desfolha, cobre a roupa branca com milhares de sujas traças de
papel.
Sabe-se de um caixeiro-viajante que começou a sentir dor no pulso esquerdo,
justo debaixo do relógio de pulso. Ao arrancar o relógio, o sangue jorrou: a ferida
mostrava os sinais de uns dentes muito finos.
O médico acaba de nos examinar e nos tranquiliza. A sua voz grave e cordial
precede os remédios, cuja receita ele escreve agora sentado à mesa. De vez em
quando levanta a cabeça e sorri, animando-nos. Não é nada demais e daqui a
uma semana estaremos passando bem. Refestelamo-nos no sofá, felizes, e
olhamos distraidamente em volta. De repente, na penumbra debaixo da mesa,
vemos as pernas do médico. Ele arregaçou as calças até as coxas e veste meias
de mulher.
Preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio
Pensa nisto: quando te oferecem um relógio oferecem-te um pequeno inferno florido, uma prisão de rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, muitos parabéns, que te dure muitos e bons, é uma óptima marca, suíço com não sei quantos rubis; não te oferecem somente esse pequeno pedreiro que prenderás ao pulso e passearás contigo. Oferecem-te – ignoram-no, é terrível ignorá-lo – um novo bocado frágil e precário de ti mesmo, algo que é teu mas não é o teu corpo, que tens de prender ao teu corpo com uma correia como um bracito desesperado pendente do pulso. Oferecem-te a necessidade de lhe dar corda todos os dias, a obrigação de dar corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de ver as horas certas nas montras das joalharias, o sinal horário na rádio, o serviço telefónico. Oferecem-te o medo de o perder, de seres roubado, de que caia no chão e se parta. Oferecem-te uma marca, a convicção que é uma marca superior às outras, oferecem-te a tentação de comparares o teu com os outros relógios. Não te oferecem um relógio, és tu o oferecido, a ti oferecem para o nascimento do relógio."
Julio Cortázar, in Histórias de cronópios e de famas, Editorial Estampa
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