segunda-feira, 19 de abril de 2021

Para que serve a Cultura?


Para que serve a Cultura?
por Eugénio Lisboa
"No malogrado diário Europeu, dirigido por Augusto de Carvalho, nos anos oitenta do século passado, publiquei a primeira de uma série de crónicas, com o inquietante título acima. A pergunta preocupava-me e nunca, para ela, encontrei uma resposta satisfatória. Como nem o jornal onde foi publicada nem o livro onde foi recolhida são de fácil acesso, e dado me parecer que a pergunta merece reflexão, trago-a aqui de novo e muito me agradaria que fosse comentada.

Na imprensa, uns pugilistas, braços nus,
Uns contra os outros, rábidos, disparam
Sarcasmos, que ao diabo não lembraram…
Que línguas, santo nome de Jesus!
Camilo, Nas Trevas (sonetos sentimentais e humorísticos)

Quando era mais novo e mais inocente, acreditava que havia três mundos sagrados, onde o espírito soprava, privilegiadamente: o da Arte, o da Religião e o da Academia. O templo da criação, o templo do retiro e da meditação solitária, o templo da reflexão e do diálogo. Cá fora era o caos, a poluição, a falta de rigor, a promiscuidade… Dos três templos, só o da religião me parecia inacessível, por me faltar a fé. Ainda assim, ousava eu dizê-lo, de mim para comigo, como me seduzia às vezes, depois do vendaval e da intensidade das paixões (com o seu desgaste e o sentido de abaixamento que não raro nos infligem), um bom retiro e uma longa meditação, num vasto e frio claustro apetecido! Que pena ser a fé um ingrediente indispensável! Assim sonhava, e vejo hoje para quão longe da realidade eu disparava o meu apetecer!
A vida dá-nos muito e tira-nos ainda mais. Tira-nos, sobretudo, as nossas melhores ilusões. Sei hoje – e sabe-o quem não queira persistir em alimentar sonhos e alienações que já nada sustenta – que o mundo da Arte, o mundo da Religião e o mundo da Academia nada têm de sagrado: são territórios profanos, tão bons e tão mesquinhos como quaisquer outros onde se desenvolve a actividade dos humanos, com as suas grandezas e as suas infâmias. Ocasionais Palatinos de intrigas pérfidas, de sórdidas lutas pelo poder, palcos de intrigas bizantinas, terrenos quase sempre improváveis para o activo «exercício da bondade», para usar uma expressão cara a José Régio – a Arte, a Religião e a Academia nada têm a oferecer de sofisticadamente especial à sensibilidade refinada e ao gosto austeramente exigente.. Ou por outra: não a Arte, a Religião e a Academia em si, mas o terreno, o contexto humano em que tais pelouros se manifestam… O homem tudo reduz à sua dimensão quotidiana, que não é necessariamente estimável e, menos ainda, particularmente admirável. De aí que muito cedo me tenha começado a chocar a atmosfera de zaragata adstringente em que frequentemente se processa o «diálogo» dos nossos escritores, dos nossos artistas, dos nossos homens de cultura… A luta desenfreada pelo território ocupado, a ânsia de captar, manter e expandir as chamadas «zonas de influência», a paroquial preocupação com uma reputaçãozinha provinciana e nem por isso menos apreciada, cedo inclinam o «diálogo» no sentido do famigerado «modelo de polémica portuguesa» (Camilo). A tal ponto tudo tende a descambar no insulto pessoal, no dichote, na insinuação pequenina e um pouco sórdida, que a higiene quase sempre recomenda que voltemos a cara para outro lado. «Ó Musa da calúnia, não me contes / D’esta lusa Calábria altos mistérios», gemia Camilo que no entanto mergulhou até ao pescoço no pântano da milenar polémica portuguesa, cujo perfil ajudou a delinear. Diante deste espectáculo pouco estimulante, turvo e torpe, apetece perguntar: «Mas, afinal, para que serve a cultura? Para que serve, se nos não dá um padrão de conduta elegante, se nos não afina nem o espírito nem os códigos de comportamento?» Repito: «Para que serve a cultura? Que faz ela de nós, que nos não torna melhores? Que faz ela que nos não dá o gosto de um estilo, de uma estética das maneiras, que em nós não promove o sentido de uma rigorosa exigência?»
É claro que a cultura é uma coisa e a moral é outra. Mas já Gide insinuava que a moral era, ao menos, uma eventual dependência da estética (e não o inverso, diga-se de passagem). Seja como for, alguns de nós gostaríamos de pensar que a estética promove ou desencadeia uma certa elegância do proceder porque o contrário disso… é feio (como dizem os pais às criancinhas, quando elas praticam um acto moralmente punível: note-se a contaminação do moral pelo estético, que naturalmente o absorve). A este respeito, observava Somerset Maugham ( que era, por sinal, um espírito livre e desenvolto, alheio a preconceitos e por isso detestado e desprezado pela classe menos inteligente que a Inglaterra até hoje produziu – a dos «high-brows»): «O valor da cultura é o seu efeito no carácter. Não serve propósito nenhum a não ser que o enobreça e o fortaleça. O seu uso é a própria vida. O seu objectivo é, não a beleza, mas a bondade». Não sei se será assim. A verdade é que os factos observáveis nos levam frequentemente a pensar, ainda com Maugham, «que o único uso da cultura é permitir que digamos disparates com alguma distinção». E, às vezes, mesmo sem qualquer particular distinção. A cultura torna-se um mero «ornamento» social ou, no limite, um equipamento profissional que não confere qualquer especial elegância de gestos ao eventual manipulador dela. Neste extremo (que não é uma raridade), a cultura, como notava Simone Weil, «é um instrumento manejado por professores para fabricarem professores que, chegada a sua vez, fabricarão outros professores». Tudo à margem de qualquer superioridade, distinção, exemplaridade e, muito menos, sacralidade…
Pode compreender-se e fazer-se até um inventário inteligente das causas deste fenómeno um tanto penoso. É um facto: os artistas, os escritores convivem mal uns com os outros. Nos seus romances, em especial no ciclo romanesco A Velha Casa e também no notável e pouco lido romance que é o Jogo da Cabra Cega, José Régio fez, entre outras notáveis coisas, um levantamento perfidamente penetrante e exaustivo das armadilhas em que tropeça, no convívio com «os outros», a fauna dos artistas e, de um modo geral, dos homens de cultura. E na sua extraordinária Confissão dum homem religioso, Régio voltou ao assunto: «Por agora», notava ele, num capítulo precisamente intitulado «O Convívio Humano», «não versarei senão as dificuldades que levanta o exercício da literatura. Creio serem mais ou menos conhecidos os ressentimentos, as rivalidades, as lutas aceradas e mesquinhas, as pequeninas intrigas, os rancores manifestados ou recalcados, os impulsos de revindicta, etc., que se criam entre os criadores literários, ou entre os criadores e seus críticos, ou ainda entre os criadores e o público. A necessidade de compreensão, aprovação e apologia – torna todo o artista vibrantemente sujeito a esses por vezes baixos fenómenos psíquicos». Eu iria um pouco mais longe do que Régio: é a necessidade de aprovação e apologia, aliada a uma permanente incerteza ou insegurança que estão na base do comportamento não raro pouco elegante de tanto escritor e artista. Rivalidade, espírito de competição – existem em todos os sectores da actividade humana, incluindo o pelouro científico. Simplesmente, neste último, tudo se processa a um nível menos áspero, mais civilizado. É que, como observava C. P. Snow, «um cientista criador tem, em regra, uma razoável certeza quanto ao valor da sua obra», ao passo que a maior parte dos escritores e pintores não a têm. Os critérios de avaliação dos resultados, em arte, não têm a mesma meridiana segurança e nitidez que poderão ter os de avaliação idêntica, em ciência. Um êxito, no domínio científico, sossega e aplaca. Um «êxito», em arte, deixa perpetuamente inquieto o seu autor, porque nenhum juízo lhe pode dar uma garantia segura do valor da sua obra. De aí, insinuava Snow, o bizarro e inquietante comportamento do grande poeta americano, Robert Frost, que, inundado de prémios e comendas, mas sempre inseguro, sofreu até ao último minuto com a angústia do Prémio Nobel, que acabou por nunca chegar… Um grande poeta, pendurando o seu destino num prémio falível! Um grande artista que honraria qualquer prémio, aguardando, com ansiedade «cocasse», uma recompensa que já nada lhe acrescentaria à glória! Mas Eliot tivera o prémio e Frost queria-o também! «De todas as paixões, comentava Snow, «a inveja – e tanto mais quando devora personalidades de grande formato – é a menos agradável de contemplar.» Frost era um grande poeta e, em alguns aspectos, um grande homem. Mas era um grande homem que a sua imensa cultura e convívio profundo com as coisas e pessoas da cultura não afinaram até ao ponto de ser capaz de desprezar uma honraria discutível. Stendhal afirmou um dia que chegara a saber alemão tão profundamente como o francês, que era a sua língua, mas que esquecera deliberadamente a língua de Goethe, por desprezo, ao dar-se conta de que os alemães levavam a sério as condecorações. Entre esta atitude extrema e o patético desassossego de Frost, eu opto decididamente por Stendhal. Há neste pequenismo de se levar a sério um galardão qualquer, mesmo supostamente importante, uma inelegância fundamental, uma falta de integridade em relação aos fundamentos da própria criação, um habitar de zonas superficiais que nada têm que ver com a génese profunda que o acto criador implica. Há, em suma, uma falta de estilo infinitamente dolorosa de contemplar. Os galardões e prémios dão uma certa alegria festiva à vida e, às vezes, uma certa compensação material. Mas, se uma vida de alegria profunda, como se supõe que é a alegria da criação, se vê subtilmente ameaçada por aquilo que não é do domínio do essencial, então apetece perguntar: Para que serve a arte? Para que serve a cultura? Para que servem, se tudo quanto produzem, como resultado, é uma fauna humana cujo comportamento milenar é de uma suprema falta de estilo? «A civilidade recíproca entre autores é uma das cenas mais risíveis na farsa da vida», observava o implacável Dr. Johnson, testemunha aguda da comédia humana do seu tempo. Ai de mim, de então para cá as coisas não mudaram para melhor! O poeta hindu Tutsi Das passava por ter chegado a um tal estado de afinação, doçura e sintonia com a natureza, que conseguia comunicar com todas as criaturas vivas dos bosques. E Rabindranath Tagore, grande poeta indiano do século XX, possuía um espírito tão suave e gentil, que os esquilos lhe trepavam pelas pernas acima e os pássaros vinham, sem receio, pousar-lhe nas mãos. Pudesse isto ficar como emblema do que a verdadeira cultura, fecundando o que em nós há de melhor, deveria afinal produzir: um estilo, uma elegância, um panache, uma bondade, uma doçura de viver. Uma capacidade de desprezar tudo quanto não é essencial. Uma lealdade fundamental com o nosso eu profundo. Um decidido voltar as costas aos jogos mundanos, aos códigos em voga e às «zonas de influência». Uma forma de saber escutar o «canto profundo». E só esse."
17.04.2021
Eugénio Lisboa

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