sábado, 28 de abril de 2018

Canto

Canto
... e o vento, 
o vento dos altos a que me dei, 
a ti me trouxe 
a ti me entregou. 
Se em mim já estavas! 
Pela boca, pelos olhos e pelas mãos, 
arreigado e voraz, 
meu invasor enternecido. 

Cinco vidas, nada menos, 
cinco vidas querias ter. 
Cinco vidas... 
Mas uma, apenas, ardente, violenta e dissipada, 
uma só não te bastaria? 
Uma, 
quintuplicada, centuplicada na hora inefável, 
no momento embriagado... 
Uma, para me dares, para eu de ti receber, 
vergada, sucumbida? 
É primavera! saíu-me da boca. 
E tu sorriste. 
Sorriste, creio. 
Primavera e todas as estações… 
Chuva e sol, tempo sem idade. 

Aqueles suaves, langues verdes, tão cariciosos; 
os redondos troncos 
e os musgos fofos; 
os melros agrestes 
e as campainhas roxas daquelas flores da minha infância, 
de que me ensinaste o nome tão doce, tão estranho… 
E as loucas nuvens corredias 
e as pedras hieráticas 
e as veredas amáveis, 
como se os ofereciam! 
Amavam-nos, 
Não o viste? 
No passo certo em que ambos íamos 
tudo, tudo nos prendia 
e nós tudo deixávamos. 
Mas o vento… 
o vento dos altos a que me dei, 
mais do que o resto a ti me trouxe, 
a ti me entregou. 
Como se eu te esperasse 
e te pudesse fugir, 
sôfrego quiseste-me prender. 
Eu presa já estava... 

E assim continuámos. 

Aquela hora não esquece. 
Não pode esquecer, 
nem se repete. 

Mudarás tu ou mudarei eu. 
O mundo acena-te. 
E não se é nada... 
Mas a hora, a hora, a hora tão cobiçada, 
a hora que chegou, 
passando, não passa… 
morrendo, ficou... 
Nos ramos, 
nas heras luzentes, 
na chuvinha suspensa, 
nas voltas do caminho, 
na frescura aspirada, 
na solidão alegríssima e confidente, 
em ti e em mim. 
Ficou. 
Está. 
Mas a ninguém o confesses 
nem disso te convenças. 

Permanece, 
está naquelas flores rosadas, 
quase sem cor, dos lindos arbustos… 
Tornaremos jamais a vê-los sem nos lembrarmos? 
Eles… somos nós passando, 
Tu, silencioso; 
eu, aconchegada. 
Na tua mão quente, 
a minha, presa e enraizada, 
tão segura e tão confiante, 
era uma dádiva. 
Naquele breve momento 
tu a recebias e guardavas. 

Assim, inteira, a mim me guardasses! 

Ou, sequer, a lembrança inconfundível 
do repente doce e acre 
em que me beijaste, 
como se eu fosse uma folha, 
uma baga de árvore 
e tu uma rajada. 
Em que me aspiraste 
ou em que me sorveste... 
Não me ficaria a boca em sangue? 
Deixaste-me, 
deixaste a tua escrava um pouco atemorizada, 
meu senhor. 
Se eu pudesse voar, 
soltar-me dos teus braços, 
iria como um pássaro, receoso e deslumbrado, 
de árvore em árvore, de ramo em ramo, 
sem nada ver, tonto, tonto, 
até que de novo o chamasses. 

Mas a longa, 
a magnânima tarde 
não me concedeu asas... 
Por isso a minha mão dentro da tua, 
sensível e cativa, 
te disse, te repetiu longamente, à saciedade, 
o que bem querias saber 
e até o que sentias. 
Te confessou quanto lhe pediste. 
Irene Lisboa, in 'Revista Litoral'

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