Sentia-me perdido, abandonado.
Adoçava-me um pouco a dor e a solidão ir escrevendo o diário do meu luto – uma
forma de ir continuando a estar com ela. Eugénio Lisboa
Eugénio Lisboa perdeu a mulher , Maria Antonieta (MA), em Julho de 2016. Com ela, vivera cinquenta e sete anos .
Autor de uma magnífica e premiada obra memorialística, em seis volumes, decidiu acrescentar um outro volume, para encerrar um relato, que só poderia estar completo, com a homenagem à sua companheira de longos e extraordinários anos.
Casamento de Eugénio Lisboa com Maria Antonieta,Março de 1959 |
"Estes últimos dias da MA no Lar foram dias particularmente felizes, porque havia esperança. A ensaísta americana Susan Sontag disse um dia que a doença é o lado nocturno da vida; nestes dias, “em casa”, a MA viveu o lado diurno da vida. Recebeu amigos, conversámos demoradamente e demo-nos ao luxo de fazer planos. A Geninha estava presente e muito participativa, mas, ao fim de alguns dias, regressou ao Qatar, contente com a situação. Tudo parecia finalmente encaminhado para uma conclusão feliz.
Num domingo, alguns dias depois da partida da Geninha, encontrava-me eu no Jumbo, de Cascais, a fazer umas compras e a tratar da lavagem do carro, eis que recebo uma preocupante chamada telefónica: a perna da MA, cuja temperatura baixara e cuja aparência era inquietante, deveria ser imediatamente examinada nas urgências de Cascais e dali possivelmente transferida para o Egas Moniz, via S. Francisco Xavier. Pediu-se uma ambulância para ir buscar a MA ao Lar e eu segui, do Jumbo, directamente para o Hospital de Cascais, onde aguardei a chegada da ambulância. Depois de examinada, procedeu-se à transferência e eu fui, separadamente, no meu carro, ao Hospital S. Francisco Xavier, onde me encontrei com a MA, que se encontrava, num corredor, a aguardar a transferência para o Egas Moniz. Fiquei a fazer-lhe companhia, na esperança de ela ser transferida ainda nessa noite, o que veio a acontecer. Na madrugada do dia 6 de Junho (2016), deu de novo entrada no Hospital Egas Moniz, onde ficou entregue aos cuidados da equipa do Dr. Pedro Amorim. Iriam ser dois meses de altos e baixos, de esperança e desespero, durante os quais a fui ver todos os dias, levando-lhe coisas de que necessitava, filmes, discos, literatura, até alimentos para a hora do lanche da tarde. E atenção. E carinho. Sobretudo, isto. Ao fim da tarde, regressava a casa, em S. Pedro do Estoril, de onde constantemente lhe telefonava, para nos mantermos ligados. Ao fim de algumas semanas o médico começou a aceitar a ideia de mandá-la para casa, mas foi avisando que tinha de estar preparada para, eventualmente, regressar ao hospital. Estávamos neste preparo, aguardando a qualquer momento a decisão do médico, quando se lhe declarou uma pneumonia grave. Uma médica de serviço preveniu-nos, com uma franqueza que me pareceu um bocadinho brutal, que devíamos estar preparados “para o pior”. Nessa noite, em casa, fui-me completamente abaixo, de puro desespero. Estava preparado para tudo, menos para perder a MA. Mas, nos dias seguintes, reagindo bem aos antibióticos, a MA pareceu estar a melhorar, francamente, da pneumonia, embora o coração parecesse estar a dar alguns cuidados. Estávamos, então, na segunda quinzena de Julho. No dia 25 de Maio, eu fizera 86 anos e no dia 30, a MA completara 80. Tinham sido efemérides assinaladas no meio de muita aflição, mas também, apesar de tudo, de alguma esperança. Nessa segunda quinzena de Julho, eu passava os dias ao lado da MA, segurando-lhe a mão e vigiando atentamente o aparelho que lhe controlava o funcionamento do coração. De vez em quando, desconfiado do que lia na máquina, aflito, corria a chamar uma enfermeira, que me acalmava. Nesta altura, a MA não se mostrava muito inclinada a ler, mas a minha neta Maria ofereceu-se, gentilmente, para lhe ler, em voz alta, capítulos de um livro sobre Nova Iorque, o que a MA pareceu muito apreciar. Na ausência da Maria, fazia eu de leitor. Era importante manter a atenção dela desperta e o cérebro a funcionar. Mas eu notava, compungido, que havia uma certa desactivação de todo o seu ser. Quando, de casa, lhe telefonava, ela já não atendia o telefone: ou não o ouvia ou não o encontrava. Parecia que, aos poucos, se ia “desligando”, o que muito me inquietava. Continuava a levar-lhe sanduiches e sumos, mas tinha que a forçar – tocava de leve na comida, por cortesia, mas, visivelmente, não lhe apetecia. Eu não sabia o que pensar, mas não queria acreditar no pior.
No dia 30 (de Julho), um sábado, fui, como de costume, ver a MA, que se encontrava a respirar com dificuldade. Estavam lá, também, a Geninha e a Teresa Martins Marques. Acarinhei a MA, fiz-lhe muitas festas na cabeça, peguei-lhe na mão, mas não deu grandes mostras de reagir. Respirava com dificuldade. Não pensei o pior, embora tudo aquilo me inquietasse. Pouco depois das 19.00 horas saímos para irmos jantar, eu, a Teresa e o marido, o Ernesto Rodrigues, em S. Pedro do Estoril. A Geninha seguiu para Óbidos, onde tinha a sua casa de férias. No final do jantar, o telefone da Teresa tocou e ela pegou nele, numa grande aflição, que eu não percebi ou não quis perceber: ela, obviamente desconfiava de algo de grave, embora não houvesse, aparentemente, quanto a mim, razões para isso. O telefonema era da Geninha, que acabara de receber uma chamada do hospital: às 19.40, a MA deixara de viver, devido a uma paragem cardíaca. Fui-me completamente abaixo porque, além do mais, não estava nada preparado. Não estava preparado, como continuo a não estar resignado, para a perda da minha companheira de 57 anos. Pedi que me levassem ao hospital e, lá chegado, perguntei se podia vê-la. Levaram-me ao quarto e olhei, incrédulo, para ela. Nunca esquecerei a impressão que me fez: a de um ser que tinha parado. Que tinha sido inesperadamente detido. Mostrava, no rosto, o esboço de um sorriso de perplexidade. Beijei-a, fiz-lhe companhia, por alguns minutos e depois pedi que me levassem para casa. Seria cremada, na terça feira, dia 2, levando-me o meu filho João Luis, no dia seguinte, para o Algarve, onde estive cinco dias, num estado de atordoamento e incredulidade, incapaz, por completo, de aceitar a realidade de uma nova vida sem a MA. Recebi muitas mensagens de solidariedade e amizade, quase todas aludindo à pessoa muito especial que tinha sido a MA. Sentia-me perdido, abandonado. Adoçava-me um pouco a dor e a solidão ir escrevendo o diário do meu luto – uma forma de ir continuando a estar com ela. É esse diário, para todo o período da doença e morte da MA que, a seguir, publico: acrescentando-lhe as entradas relativas ao ano que se seguiu ao seu falecimento."
Eugénio Lisboa, in "Acta Est Fabula- Epílogo", Editora Opera Omnia, Novembro de 2017
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