(“Quando não se pode tomar decisões só se tomam decisões erradas”)
Autor ilegível
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"Levaram o menino a ver o aeroporto. Vestiram-no de domingo, engomaram sua alma,
lustraram seu pé. De mão dada, ele entrou no chapa. O tio desconferiu uma
riqueza de notas. Tudo em sorrisos, como se tudo aquilo fosse cumprir de
promessa.
O menino era desses que a guerra deslocou não só de endereço mas de vida. Vinha de lá, onde a terra desfaz fronteira com outras terras. Nesse seu lugarinho tudo era sossegoso, até o tempo ali ganhava vastas preguiças.
Agora, em casa dos tios, o menino só encontrava espantos no rumor da cidade. Certa vez, o rapaz entrou em casa, afogueado: um avião atravessara as nuvens, em cima. O tio lhe perguntou: “mas nunca viu, nem cheirou barulho no ar?” Nada. O céu de lá era muito desqualificado, nele nunca riscara nenhum avião.
Com o tempo, a família começou a se preocupar com a cabisbaixeza da criança, sempre de olhos minhocando o chão. No início, ele nem queria sair de casa. O tio se maçava, o coração lhe subia à cabeça.
- “Um dia esse miúdo vai-se chocar com a vida!
“Deixa-lhe, marido”: era conselho da velha tia. Ela entendia de feridas e sofrências. Quando o pão é magro quem escasseia é o homem. Sabe-se o que aquele menino passara, lá de onde vinha? O marido que se dispensasse. Aquilo era assunto de ternura e mãe.
O tio reagia: “como deixo? Será que esse menino não tem jeito nem para viver? Sempre e sempre de olhos no chão! Esse mufana foi é mal-olhado. Até me arrepia. parece o olho dele tem medo da pálpebra.
Uma noite, o tio estremunhou-se. Acordou a mulher e lhe revelou suas sonâmbulas reflexões: “eu sei o que sucede com ele, esse nosso sobrinhito não é um deslocado de guerra. A guerra é que deslocou-se para dentro dele. E agora, como tirar a guerra de lá dos interiores, como desalojar a malvada lá das províncias da sua alma? Não há comissão governamental, nem missão das Nações Unidas. Não há departamento para esse caso”. A mulher cortou:
- “Por que não me deixa titiar esse menino sozinha?”
O homem nem respondeu. Levantou-se e foi ao quarto do sobrinho. E lhe falou assim:
- “Amanhãzinha vais ver aviões adiante do céu, barulharem até te encheres de ouvidos”.
Meio oculto no lençol, o miúdo antecipava temores. O tio nem dava as confianças: “veja sobrinho, até já entrei num desses bichos.
- “Entrou?
- “E como entrei! Tua tia até chorou. Se tive medo? Nem medo, nem receio. Eles é que tiveram medo de mim. Por isso me amarraram logo na cadeira”.
Retornado ao seu quarto, o tio inchou uma esperteza vaidosa no peito: “o que ele precisa é o céu se abrir para ele. Compreende, mulher? A terra está cheia de ferida, não traz consolo nem ombro para ninguém. O céu é que, agora, tem que se abrir para ele”. A esposa sacudiu a cabeça, receosa.
Agora, desembarcando em pleno aeroporto, o menino lantejolhava em redor. Tudo era sonho. Seus olhos se abasteciam de súbitas e infinitas visões. Não falou, não sorriu. O tio, à distância, comentava: “o miúdo está em estado, coitadito”.
Chegada a hora do deitar, ele permaneceu sentado, mais rígido que a tábua da cama. A tia lhe reservou um carinho:
- “Que tu tens, meu filho?”
E ele, então, falou. Disse muito oficialmente:
- “Quero ser um avião!”
Manhã seguinte, todos se riam. A tia lembrava a solenidade da declaração. Não queria ser piloto, técnico espacial, mecânico especial, ou mesmo simples passageiro. Nada. Avião, era o que ele queria ser. O tio acrescentou piada:
- “Quer ser Boeing ou DC 10?”
O miúdo não entendeu a graça. No fundo, ele já se tinha todo ele decidido. E nunca mais da sua boca se escutou sílaba que fosse. Se insulou no quarto, sentado, imovente. Os braços cumpriam ordem de serem asas, o corpo duro, quase metálico. Deixou de comer, deixou de beber. A custo a tia lhe insistia, apontando um copo:
- “Vá, meu filho, isso aqui é combustível!”
Mil vezes o tio lhe falou, em várias tentações e tentativas:
- “Não prefere ser um pássaro, vivinho de alegrias?”
Tudo irresultava. Resolveram conduzi-lo de novo ao aeroporto. Todo o caminho, o miúdo seguiu de braços abertos, fixo que nem aço. Chegado ao aeroporto o menino olhou extasiado seus companheiros de espécie, as aeronaves. E desatou correndo, roncando seus fantasiosos motores. Olhando a criança correndo de encontro ao sol, o tio até se lagrimava, comovido:
- “Veja, veja como ele brinca!”
E assim ganhando mais e mais velocidade, braços cruzando o sonho, o menino se confundia, a contraluz, com o fogo inteiro do poente. Seria, no instante, que o céu se abria para aquela criaturita?
Pupila esgrimando o sol, o tio deixou de ver o miúdo. Apenas uma mancha, sombra súbita cruzando os ares. Ainda acreditou ser um pássaro que lançava seu voo da varanda para o distante chão. Nesse momento ele aprendia que o céu está padecendo de cataratas, repentinas névoas que impedem Deus de nos espreitar."
Mia Couto, in Contos do nascer da Terra, Editorial Caminho
O menino era desses que a guerra deslocou não só de endereço mas de vida. Vinha de lá, onde a terra desfaz fronteira com outras terras. Nesse seu lugarinho tudo era sossegoso, até o tempo ali ganhava vastas preguiças.
Agora, em casa dos tios, o menino só encontrava espantos no rumor da cidade. Certa vez, o rapaz entrou em casa, afogueado: um avião atravessara as nuvens, em cima. O tio lhe perguntou: “mas nunca viu, nem cheirou barulho no ar?” Nada. O céu de lá era muito desqualificado, nele nunca riscara nenhum avião.
Com o tempo, a família começou a se preocupar com a cabisbaixeza da criança, sempre de olhos minhocando o chão. No início, ele nem queria sair de casa. O tio se maçava, o coração lhe subia à cabeça.
- “Um dia esse miúdo vai-se chocar com a vida!
“Deixa-lhe, marido”: era conselho da velha tia. Ela entendia de feridas e sofrências. Quando o pão é magro quem escasseia é o homem. Sabe-se o que aquele menino passara, lá de onde vinha? O marido que se dispensasse. Aquilo era assunto de ternura e mãe.
O tio reagia: “como deixo? Será que esse menino não tem jeito nem para viver? Sempre e sempre de olhos no chão! Esse mufana foi é mal-olhado. Até me arrepia. parece o olho dele tem medo da pálpebra.
Uma noite, o tio estremunhou-se. Acordou a mulher e lhe revelou suas sonâmbulas reflexões: “eu sei o que sucede com ele, esse nosso sobrinhito não é um deslocado de guerra. A guerra é que deslocou-se para dentro dele. E agora, como tirar a guerra de lá dos interiores, como desalojar a malvada lá das províncias da sua alma? Não há comissão governamental, nem missão das Nações Unidas. Não há departamento para esse caso”. A mulher cortou:
- “Por que não me deixa titiar esse menino sozinha?”
O homem nem respondeu. Levantou-se e foi ao quarto do sobrinho. E lhe falou assim:
- “Amanhãzinha vais ver aviões adiante do céu, barulharem até te encheres de ouvidos”.
Meio oculto no lençol, o miúdo antecipava temores. O tio nem dava as confianças: “veja sobrinho, até já entrei num desses bichos.
- “Entrou?
- “E como entrei! Tua tia até chorou. Se tive medo? Nem medo, nem receio. Eles é que tiveram medo de mim. Por isso me amarraram logo na cadeira”.
Retornado ao seu quarto, o tio inchou uma esperteza vaidosa no peito: “o que ele precisa é o céu se abrir para ele. Compreende, mulher? A terra está cheia de ferida, não traz consolo nem ombro para ninguém. O céu é que, agora, tem que se abrir para ele”. A esposa sacudiu a cabeça, receosa.
Agora, desembarcando em pleno aeroporto, o menino lantejolhava em redor. Tudo era sonho. Seus olhos se abasteciam de súbitas e infinitas visões. Não falou, não sorriu. O tio, à distância, comentava: “o miúdo está em estado, coitadito”.
Chegada a hora do deitar, ele permaneceu sentado, mais rígido que a tábua da cama. A tia lhe reservou um carinho:
- “Que tu tens, meu filho?”
E ele, então, falou. Disse muito oficialmente:
- “Quero ser um avião!”
Manhã seguinte, todos se riam. A tia lembrava a solenidade da declaração. Não queria ser piloto, técnico espacial, mecânico especial, ou mesmo simples passageiro. Nada. Avião, era o que ele queria ser. O tio acrescentou piada:
- “Quer ser Boeing ou DC 10?”
O miúdo não entendeu a graça. No fundo, ele já se tinha todo ele decidido. E nunca mais da sua boca se escutou sílaba que fosse. Se insulou no quarto, sentado, imovente. Os braços cumpriam ordem de serem asas, o corpo duro, quase metálico. Deixou de comer, deixou de beber. A custo a tia lhe insistia, apontando um copo:
- “Vá, meu filho, isso aqui é combustível!”
Mil vezes o tio lhe falou, em várias tentações e tentativas:
- “Não prefere ser um pássaro, vivinho de alegrias?”
Tudo irresultava. Resolveram conduzi-lo de novo ao aeroporto. Todo o caminho, o miúdo seguiu de braços abertos, fixo que nem aço. Chegado ao aeroporto o menino olhou extasiado seus companheiros de espécie, as aeronaves. E desatou correndo, roncando seus fantasiosos motores. Olhando a criança correndo de encontro ao sol, o tio até se lagrimava, comovido:
- “Veja, veja como ele brinca!”
E assim ganhando mais e mais velocidade, braços cruzando o sonho, o menino se confundia, a contraluz, com o fogo inteiro do poente. Seria, no instante, que o céu se abria para aquela criaturita?
Pupila esgrimando o sol, o tio deixou de ver o miúdo. Apenas uma mancha, sombra súbita cruzando os ares. Ainda acreditou ser um pássaro que lançava seu voo da varanda para o distante chão. Nesse momento ele aprendia que o céu está padecendo de cataratas, repentinas névoas que impedem Deus de nos espreitar."
Mia Couto, in Contos do nascer da Terra, Editorial Caminho
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