“Interrogamo-nos acerca da
poesia? Desejaríamos saber o que pretende ela, aquilo que pretende de nós. É
que muitas vezes não nos diz nada. Palavras, fragmentos de frases, balanceadas,
hesitantes, versáteis, palavras que não conseguimos reter.
Refrões de cançonetas, talvez? Mas então onde está a música?
Talvez músicas silenciosas, tocadas no fundo da água, a cem braças de profundidade.
Os outros poemas, todos os poemas célebres, organizados, compostos, exércitos em armas que marcham a passo certo. Não estamos lá quando passam. Viramos a cara, vamos procurar noutro lado […]
Agora, depois de Iniji, já não interrogamos. Há uma certeza. Viu-se qualquer coisa, seguiu-se essa coisa, como se a gente estivesse a fazê-la, como se tivesse encontrado ouvidos para escutar a música do fundo da água.
Não é como os outros, este poema, não distrai, não se esquiva. Na verdade não está escrito, encontra-se ali na página por acidente, e deve estar também algures, gravado numa árvore, por exemplo, ou inscrito na terra seca, ou tatuado então na pele humana. Claro que não está apenas escrito. Passou pelo tremor da escrita, foi assim que apareceu primeiro. Mas não existe somente nesse tremor, não existe somente para os olhos. Existe algures, em volta, no ar, nas nuvens, na folhagem das árvores vistas à distância, no mar, na erva calcada de uma pista. E nas ruas de uma grande cidade, entre as paredes dos prédios acompanhando o movimento dos automóveis, os cláxons, as luzes, a multidão.
Deve estar lá há muito tempo pois, quando o lemos, reconhecemo-lo imediatamente.
Não o procurávamos, nem procurávamos sequer o nome de um autor. Íamos ao seu encontro sem saber, e ele vinha ao nosso encontro seguindo o seu curso de cometa que se aproxima, roça e desaparece. […]
O poema veio de longe, assim, tranquilo, com os seus gestos, a sua vida, para nos reencontrar.
Insensato, móvel, penetra em nós e escuta-nos. Ou éramos nós que não tínhamos corpo, e temos agora o corpo e Iniji. Não sabíamos falar. […] Longe deste poema, a vida era surda, sussurrada, pois todas as palavras da linguagem normativa (a linguagem das teses e das antíteses, a linguagem das análises, dos juízos e proclamações solenes) eram unicamente um lento nevoeiro roçando a face da matéria. Era possível que nos confundissem com os torrões e calhaus.
[…] Como é possível? Onde nos encontrávamos então, antes, antes de Iniji? […]
Iniji não existe. Cada vez que dela nos apercebemos, a língua estala e a palavra morre. Interrompida antes de entrar no mundo. Reflexos, talvez, porquanto as suas palavras não são palavras. Se retemos um nome, felizes por saber aquilo que surgirá, ele rebenta. Não há nomes, só bolhas. Balbuceios de bebé, Iniji, Ananiá, Inji, Djã dã dã, Irritilili. […]”J.M.G. Le Clézio, De Um poema (Iniji) que não é como os outros , in As magias : poemas mudados para português , Assírio&Alvim , de Herberto Helder,
Refrões de cançonetas, talvez? Mas então onde está a música?
Talvez músicas silenciosas, tocadas no fundo da água, a cem braças de profundidade.
Os outros poemas, todos os poemas célebres, organizados, compostos, exércitos em armas que marcham a passo certo. Não estamos lá quando passam. Viramos a cara, vamos procurar noutro lado […]
Agora, depois de Iniji, já não interrogamos. Há uma certeza. Viu-se qualquer coisa, seguiu-se essa coisa, como se a gente estivesse a fazê-la, como se tivesse encontrado ouvidos para escutar a música do fundo da água.
Não é como os outros, este poema, não distrai, não se esquiva. Na verdade não está escrito, encontra-se ali na página por acidente, e deve estar também algures, gravado numa árvore, por exemplo, ou inscrito na terra seca, ou tatuado então na pele humana. Claro que não está apenas escrito. Passou pelo tremor da escrita, foi assim que apareceu primeiro. Mas não existe somente nesse tremor, não existe somente para os olhos. Existe algures, em volta, no ar, nas nuvens, na folhagem das árvores vistas à distância, no mar, na erva calcada de uma pista. E nas ruas de uma grande cidade, entre as paredes dos prédios acompanhando o movimento dos automóveis, os cláxons, as luzes, a multidão.
Deve estar lá há muito tempo pois, quando o lemos, reconhecemo-lo imediatamente.
Não o procurávamos, nem procurávamos sequer o nome de um autor. Íamos ao seu encontro sem saber, e ele vinha ao nosso encontro seguindo o seu curso de cometa que se aproxima, roça e desaparece. […]
O poema veio de longe, assim, tranquilo, com os seus gestos, a sua vida, para nos reencontrar.
Insensato, móvel, penetra em nós e escuta-nos. Ou éramos nós que não tínhamos corpo, e temos agora o corpo e Iniji. Não sabíamos falar. […] Longe deste poema, a vida era surda, sussurrada, pois todas as palavras da linguagem normativa (a linguagem das teses e das antíteses, a linguagem das análises, dos juízos e proclamações solenes) eram unicamente um lento nevoeiro roçando a face da matéria. Era possível que nos confundissem com os torrões e calhaus.
[…] Como é possível? Onde nos encontrávamos então, antes, antes de Iniji? […]
Iniji não existe. Cada vez que dela nos apercebemos, a língua estala e a palavra morre. Interrompida antes de entrar no mundo. Reflexos, talvez, porquanto as suas palavras não são palavras. Se retemos um nome, felizes por saber aquilo que surgirá, ele rebenta. Não há nomes, só bolhas. Balbuceios de bebé, Iniji, Ananiá, Inji, Djã dã dã, Irritilili. […]”J.M.G. Le Clézio, De Um poema (Iniji) que não é como os outros , in As magias : poemas mudados para português , Assírio&Alvim , de Herberto Helder,
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