Machava, 12/7/76
"... Consumo o verso alheio como um vinho triste
Debito o verso próprio como um mosto.
Espero que fermentando recebe qualidade
e ganhe envelhecendo um peso audaz, odor
e um travo alegre.
Possa alguém que o consuma chamar-lhe vinho triste.
"Questionei
numa taberna um sábio:
- Que sabes tu dos mortos?
- Sei que não voltarão.
É o que sei. Vá. Bebe."
Gosto de imaginar-me a fazer disto em persa
há novecentos anos.
Em verdade e no fundo venho fazendo-lhe a glosa há trinta
sem que Kayam de mim soubesse, ou dele
eu tivera suspeita.
É da natureza do verso ser igual a si mesmo
repetindo outro verso de insuspeita existência.
Todos os versos partiram de um ponto reconhecível
quando o primeiro homem a questionar
se questionou...
Todo o verso acaba num ponto de interrogação.
Toda a Poesia é um olhar para fora
através da lente da própria natureza.
Assim a natureza de cada um
permite ir rasteando a natureza de todos
debuxando-lhe os cabos, os golfos e os baixios
as grandes embocaduras e o perfil das montanhas
levantando-lhe o mapa integral dos comportamentos avulso
até ao dia em que haja o derradeiro poeta
fechando o grande ciclo de interrogadas ânsias
com um verso igual ao primeiro, mas não o mesmo.
Até lá, poetar é esta dolorosa cartografia
este deitar de sonda em cada palavra
este manusear de astrolábio tomando o ponto aso ritmos
este perpétuo triangular de referências sonoras
este consultar inconsciente a bússola dos clássicos
este medir marés, este completar de tábuas
este redesenhar corrigente da questão primeva
numa escala apenas progressivamente maior
fractando em detalhe, perdendo em singeleza."
João Pedro Grabato Dias, in SAGAPRESS, Poesias com data, Edições Pouco,1992
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