Eugénio Lisboa apresentando a obra “Efémera Liberdade" da escritora moçambicana Amilca Ismael |
Eugénio Lisboa: "Não acredito que alguém dê pela verdadeira grandeza do Fernando Pessoa em tradução"
Entrevista
Por Diogo Vaz Pinto ( Jornal i ), 25 de fevereiro 2017
Intelectual cosmopolita, Eugénio Lisboa diz que é um
"enraízado com múltiplas raízes": Nasceu em Moçambique, viveu em
Inglaterra, Suécia, África do Sul, e está há 23 anos em Portugal. Foi homenageado
na edição deste ano do Correntes d'Escritas, onde o i o entrevistou.
Na sua 18.ª edição, o Correntes D'Escritas celebrou a sua
"maioridade", com alguns dos intervenientes que se tornaram já 'loiça
da casa' a ressalvarem insistentemente que maior já ele era há muito, tendo
sido pioneiro entre todos os festivais literários que hoje pontuam, de norte a
sul, o mapa e o calendário.
A cerimónia de abertura contou com o Presidente da
República, Marcelo Rebelo de Sousa, que consagrou este festival como “o principal”
evento no género, tendo tido o mérito de fazer da "Póvoa de Varzim uma
porta de entrada da literatura mundial no nosso país". Aqui um parêntesis
chato, o melhor mesmo é o leitor ignorá-lo e passar à frente: (À entrada do
Casino, uma manifestação de duas dezenas de trabalhadores deste exigindo a
actualização dos salários, congelados desde 2009, caiu como uma mancha na
camisa, logo escondida pela gravata. Do cimo das escadas, olhando para baixo,
escritores e editores ou se alhearam ou riram como se a manifestação viesse
acrescentar mais colorido a um dia de festa. A Sala D’Ouro do Casino ficou com
a lotação esgotada, e durante as intervenções, em que todos se congratulavam
com um evento que, segundo o vereador da cultura da Póvoa, Luís Diamantino, colocou
a cidade “no mapa universal da literatura”, o assunto nem mencionado foi.)
O festival, que deve muito do seu encanto ao lado
provinciano, gozando o encosto ao mar, numa cidade balneário que tende a
fantasmagorizar-se na época baixa, conta nesta edição com cerca de 80
escritores (50 deles repetentes) de 13 nacionalidades, e que irão passar pelas
várias mesas, debates, apresentações de livros e outras iniciativas. O evento
volta uma vez mais a buscar a representação de toda a lusofonia, só faltando
nesta edição algum escritor vindo de Timor. Marcelo saudou este aspecto como a
vertente ecuménica do festival. "Sou testemunha da abrangência ideológica,
temática e estilística" do Correntes D'Escritas, disse, destacando ainda o
papel essencial da articulação com as escolas, por onde os escritores vão
passando nestes dias. O Presidente referiu-se também a Luís Filipe Castro
Mendes, numa rábula em que notou que este chegava ali na qualidade do ortónimo
poeta que estava a concurso para o prémio Casino da Póvoa, e com o seu
heterónimo ministro da Cultura.
Tendo entretanto sido anunciada a atribuição do prémio ao
poeta Armando Silva Carvalho, pelo livro "A Sombra do Mar" (Assírio
& Alvim, 2016), Marcelo adiantou que Castro Mendes podia consolar-se
sabendo que o seu ortónimo "tinha já ganhado o coração e admiração dos
portugueses" pela sua obra poética. A outra menção do chefe de Estado foi
para Eugénio Lisboa, ensaísta de 86 anos homenageado nesta edição do festival –
sendo-lhe dedicado um dossier na revista Correntes D’Escritas –, com quem tem
em comum a terra natal, Lourenço Marques. Referindo-se ao escritor como seu
"mestre", Marcelo lembrou como este foi não só uma figura cultíssima
como irreverentíssima, superlativos que mantém em sentido mesmo com a sua
avançada idade. O presidente deixou ainda uma nota pessoal de afecto,
agradecendo o facto de nos volumes das memórias que o ensaísta tem publicado
("Acta Est Fabula", na editora Opera Omnia), recordar a sua mãe,
Maria Fernandes Duarte, e lembrou como foi pelos olhos da sua mãe que primeiro
aprendeu a admirar Eugénio Lisboa. Recordou os vários encontros numa livraria
na capital moçambicana, e confessou que tinha o hábito de vigiar os títulos que
o ensaísta comprava para conhecer "as escolhas do mestre". Na sua
intervenção, Lisboa foi sucinto, admitindo que é sempre bom ser reconhecido,
mas notando também que é próprio dos artistas e escritores sofrerem de algum
narcisismo, daí também a sua reserva em participar em festivais. Agradeceu a
homenagem e retirou-se. Na véspera tinha apresentado o seu mais recente título,
"Diário de Viagens Fora da Minha Terra" (também editado pela Opera
Omnia), outro livro que alinha no registo desassombrado, lúcido e tantas vezes
abertamente crítico das suas memórias. Com uma prosa que, em muitos aspectos, é
o mais fiel espelho do retrato que tantos amigos e colaboradores dele pintam
nas homenagens que lhe têm dirigido, destaca-se como um verdadeiro "homem
de palavra(s)". De resto, Eugénio Lisboa nunca turva as águas da sua
escrita para as fazer passar por mais profundas do que são. Nas suas crónicas
no "Jornal de Letras" como nos ensaios, sente-se que a escrita existe
por referência à vida. Não pretende que esta seja um fim em si mesmo, que rapte
os sentidos do leitor, antes os expanda e devolva ao mundo; exerce a sabedoria
como uma educação virada para fora, sendo um dos mais fulgurantes exemplos do
espírito cosmopolita que foi marcante no perfil da elite portuguesa em Lourenço
Marques.
Depois, há a candura nas suas palavras, a forma como continua
a ter a paciência de quem parece ser eterno, a afabilidade na resposta a quem o
procura. Em sua homenagem, houve já quem se lembrasse do que escreveu certa vez
Paul Valéry, palavras que lhe assentam perfeitamente: "Os homens
verdadeiramente grandes estão muito próximos dos outros pela mesma simplicidade
que os afasta até ao infinito. Porque os homens verdadeiramente grandes
conservam, na sua relação com as coisas profundas e difíceis com as quais
estabelecem sua intimidade, as mesmas atitudes que têm com toda a gente; são ao
mesmo tempo familiares, delicados e verdadeiros." O i aproveitou
para entrevistá-lo, focando as questões na sua experiência nos países da
lusofonia ou em defesa da cultura, seja enquanto escritor seja na qualidade de
diplomata. Eugénio Lisboa passou a sua vida nas latitudes e longitudes mais
diversas, tendo referido em 2010 que tinha "38 anos de Moçambique, onde
nasci, 17 de Inglaterra, 23 de Lisboa, um ano de África do Sul e um ano de
Suécia".
Ao fim destes anos todos, e de tantas viagens, que terra
sente particularmente como a sua terra?
Costumo dizer que não sou um desenraizado, mas um enraizado
com múltiplas raízes. Mas a minha terra é aquela onde nasci, Lourenço Marques,
em Moçambique. Embora esteja também já muito ligado a Portugal. Vivo aqui desde
que regressei das minhas viagens. Estou cá há 21 anos. Diria que o meu coração
está partido entre Lourenço Marques e Lisboa.
Quais lhe parece que são actualmente os desafios que
enfrenta a lusofonia?
Não há nenhum grande desafio senão o do seu próprio
desenvolvimento. A língua portuguesa é uma das línguas europeias com mais
falantes, mas estou convencido de que o que há a fazer, muito mais do que
divulgar a nossa cultura através de traduções – que é sempre, a meu ver, um
processo de segundo grau... Não acredito que os nossos grandes poetas possam
ser reconhecidos enquanto tal por via da tradução. Eles têm de ser lidos no
original. Portanto, muito mais do que despendermos energias e dinheiro em
traduções (o que também tem de ser feito, diga-se de passagem), o importante é
trazer mais pessoas ao conhecimento da nossa língua. É divulgar a nossa língua
lá fora, através de escolas, de universidades, de maneira a que os falantes da
nossa língua lá fora aumentem e eles possam tomar conhecimento directo da nossa
cultura e não pelo veículo mais fraco da tradução. A divulgação da língua
deve ser feita lá fora a partir do ensino básico e secundário. Nós em geral
investimos no ensino da nossa cultura e da língua nas universidades, mas estas
têm de ser alimentadas de baixo. É muito importante, em países como a
Inglaterra e a Alemanha, que o português se ensine ao nível da primária e
secundária. É pela educação de indivíduos capazes de ler e escrever o
português, que a nossa cultura pode ser divulgada como merece. Não acredito que
alguém dê pela verdadeira grandeza do Fernando Pessoa em tradução. Vão atrás da
historieta romântica dos heterónimos mas na verdade a grandeza da linguagem
poética do Pessoa não se transfere numa tradução, a não ser muito raramente. Há
uma tradução magnífica do “Tabacaria” feita em Inglaterra pela Suzete Macedo,
mas isso é a excepção. De uma maneira geral as traduções são relativamente
medíocres. Como notou o poeta sul-africano Roy Campbell, a poesia é que se
perde na tradução. Aquilo que não se traduz é que é a poesia.
Se a língua portuguesa tem um número tão expressivo de
falantes, por outro lado, e em comparação com o mundo anglófono ou hispânico,
parece haver uma fractura dentro da lusofonia, havendo menos intercâmbio cultural
entre os países que a compõem.
Há um problema que está na base disto tudo e que se prende
com a força económica dos países. O mundo castelhano tem por detrás um poder
económico e financeiro, para não falar do mundo anglo-saxónico, que conta com a
Grã-Bretanha, EUA, parte do Canadá, Austrália, África do Sul... Há todo um
motor de arranque financeiro que esses mundos têm que nós não temos. Nós temos
o Brasil, mas até esse parece ter-se vergado sob o seu próprio peso. Angola e
Moçambique não têm, por enquanto, esse poder. Quando o mundo lusófono for
economicamente significativo, e puder alimentar esse motor de arranque, creio
que a situação mudará. Hoje quando comparamos o universo editorial, o espanhol
é uma coisa espantosa, a diversidade das colecções e catálogos que eles têm...
Nós não dispomos dos mesmos meios, e sobretudo não temos a respeitabilidade
económica, não temos força económica para nos tornarmos apetecíveis. Mesmo
assim é impressionante as vias que temos aberto. Nomes como o Fernando Pessoa...
embora a meu ver seja conhecido não da maneira adequada, mas é conhecido. O Eça
de Queirós... Quando estive em Londres fiz uma reedição d’“Os Maias” e a
crítica inglesa postou-se de cócoras perante a grandeza do livro. Simplesmente,
são grandes clássicos que impressionam o mercado durante um determinado período
e depois eles esquecem-se deles. Tem de se voltar a acordá-los daí a 20 ou 30
anos. A primeira vez que “Os Maias” abriram brechas no imaginário
anglo-saxónico foi, salvo erro, em 1965, quando foram traduzidos pela primeira
vez, e esteve na lista de bestsellers da Time Magazine durante semanas e
semanas. Os fulanos diziam que para se encontrar universos comparáveis é
preciso recorrer a Stendhal e Tolstói. Mas passados dois, três anos
esquecem-se.
Este ano o Prémio Camões foi ganho pelo Raduan Nassar
depois de ter sido traduzido para inglês um dos seus livros (“Um Copo de
Cólera”), que recebeu destaque por ter figurado na short-list do Prémio Man
Booker... Há também o caso da Clarice Lispector que para se afirmar
comercialmente em Portugal como no Brasil esteve à espera do sucesso nos EUA,
depois da biografia de Benjamin Moser. Não lhe parece que a lusofonia não só é
frágil economicamente mas ainda se fragiliza culturalmente indo a reboque do
que se passa lá fora?
Sim, há também isso. O desempenho da Clarice Lispector lá
fora é uma fuga. O Machado de Assis também já foi traduzido, mas a literatura
brasileira não faz parte do património corrente do mundo anglo-saxónico. Quando
têm de se lembrar de um gigante na ficção nunca lhes vem à memória o Machado de
Assis, o problema é esse. Nós ainda não nos implantámos de vez lá. Quando “A
Ilustre Casa de Ramires” [romance de Eça] foi reeditado, o [crítico literário]
Jonathan Keats, no “Observer", salvo erro, perdeu literalmente a cabeça
com o livro. Ele dizia que se o Flaubert precisasse de matar a mãe para
escrever um livro como este o faria. Mas isso não fica. Se agora for perguntar
a um inglês nas universidades se alguma vez ouviu falar de Eça, ele nem faz
ideia. Apesar dessas críticas absolutamente ditirâmbicas do Keats, e do que o
próprio George Steiner disse d’“Os Maias”. No momento há uma série de ondas que
se erguem, mas isso depois não se incrusta como património permanente.
Em reacção a uma das últimas entrevistas de Lobo Antunes,
fez-lhe uma crítica devastadora depois de, a propósito de Fernando Pessoa, este
ter questionado se um homem que não fodeu pode ser um bom escritor...Pensa que
os escritores portugueses, talvez por não encontrarem um espaço próprio de
afirmação cultural, acabam por alinhar no vaudeville para animar as
hostes e chamar a atenção?
É aquilo a que eu chamo meter a mão na máquina. O Anatole
France contava que um rapazito sofria muito porque os pais não lhe davam
atenção, ele fazia trinta por uma linha para os cativar e eles não lhe ligavam
meia. Em desespero, o miúdo meteu a mão numa engrenagem mecânica e perdeu um
braço. Nesse momento os pais deram por ele. Quando vejo o Lobo Antunes meter-se
nessas picardias digo que está a meter a mão na máquina.
Está prestes a encerrar a publicação dos seus volumes de
memórias. No espaço da nossa cultura é cada vez mais raro uma figura dar-se ao
trabalho de deixar o testemunho do tempo que viveu. Sente-se a gritar para um
poço?
Espero que o livro deixe uma marca que, pelo menos, dure
algum tempo, que não morra imediatamente a seguir. Procurei fixar momentos,
situações, leituras que me marcaram profundamente, nalguns casos a fogo. A
minha esperança e ambição é que isso não morra comigo. Que fique.
Nos encontros que teve, literários ou outros, quais foram
as figuras que o marcaram decisivamente e que espera que o seu testemunho ajude
a que sejam lembradas?
Há duas categorias: Uma é a das figuras públicas, a outra é
a das pessoas que me são familiares, o meu sangue. O próximo volume das
memórias, o epílogo, é dedicado à minha mulher que faleceu há sete meses. A
figura dela e das minhas filhas, são figuras que gostaria que não fossem
esquecidas. Entre as figuras públicas, aquelas que me marcaram foram, por exemplo,
o José Régio. Alguém que, no convívio pessoal, quotidiano, epistolar, me marcou
muito. Outra figura com quem estive um único dia e me impressionou
profundamente foi o António Sérgio, o ensaísta. Das figuras que mais me
marcaram houve, além destes, dois ou três professores no liceu.
Influenciaram-me muito mais do que os professores que tive depois na
Universidade. O Dr. Cardigos dos Reis, a Dra. Maria Luísa Soares, de quem eu
falo nas minha memórias, são figuras que eu gostaria que ficassem como exemplares
pela sua acção no campo da pedagogia, até da sua identidade e marca pessoal,
foram pessoas que me deram vontade, quando era um aluno do liceu, de ambicionar
ser como eles.
A diferença do liceu dos seus tempos, serve-nos de
testemunho de um tempo em que os liceus tinham a verdadeira função de uma
verdadeira universidade. Hoje nem o liceu nem, muitas vezes, as universidades
têm esse carácter tão abrangente, tão exemplar, na transferência de
conhecimentos. E hoje a maioria dos professores universitários não são sequer
figuras muito marcantes no contexto público.
Sim, não são conhecidos nem deixam uma marca forte. Houve
uma degradação de estatuto muito grave. Já senti essa diferença quando vim do
liceu de Lourenço Marques para o Instituto Superior Técnico, onde tive dois ou
três professores de grande calibre, mas o resto fazia-me ter saudades dos
professores do liceu.
Parece-lhe que os últimos governos têm sabido valorizar o
papel do ensino público para afirmar a cultura?
Tem de se aumentar a auto-estima do professor e o prestígio
da imagem que eles projectam na sociedade. Os bons professores no meu tempo
tinham uma influência enormíssima na sociedade. Eram gente grande. Acho que
temos de voltar a transformar os grandes professores do ensino secundário e básico
em figuras importantes do nosso meio social."
Diogo Vaz Pinto , em Entrevista a Eugénio Lisboa, publicada no Jornal i, em Fevereiro de 2017
Diogo Vaz Pinto , em Entrevista a Eugénio Lisboa, publicada no Jornal i, em Fevereiro de 2017
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