Uma utopia em crise
Por António Alçada Baptista
“Os tempos não estão bons para
quem pensa encontrar um mundo de tranquilidade e de paz. Creio que é para isso
que nascemos e que toda a actividade humana devia ter subjacente os sentimentos
morais
na vivência de todos os outros
comportamentos, nomeadamente os políticos, os económicos e os científicos.
É verdade que nem todos pensam
assim mas também é verdade que o exemplo dos outros devia ser motivador dos nossos comportamentos. Confesso que,
desde pequeno, me interessam, me comovem ou me magoam os actos da espécie
humana e, que me lembre, nunca tive a mínima atracção, mesmo infantil, por aqueles
que pretendiam impor a sua vontade aos outros. “Nunca exerças o teu poder sobre
os outros de maneira que eles fiquem sem poder sobre ti.” De certo modo, este é
um dos lemas da minha posição no mundo nesta matéria tão difícil que é viver em
comunidade.
Viver com os outros é inevitável.
Viver sozinho é quase sempre trágico: aqueles que o acaso fez viver sem nenhum
contacto humano nem sequer puderam entrar na humanidade e os que, já senhores
de si, resolveram optar pela solidão, acho que se subtraíram à decisiva prova
humanaque é a de viver com os outros. Quase todos os problemas humanos vêm daí mas é também aí que devemos
procurar as soluções.
Lembro-me que Lanza del Vasto me
contou que, quando ainda novo, partiu para a Índia, descrente da Europa infestada
pelas guerras, foi viver junto de um guru que estava sozinho na montanha. Não aguentou
a falta dos outros e foi isso que o levou a partir para o pé do Gandhi, em cuja
comunidade viveu durante 12 anos e a conselho de quem regressou à Europa para
fundar em França uma comunidade – L’Arche – onde o conheci e acompanhei alguns
dias.
A muito custo, com avanços e
recuos, a humanidade parece às vezes que caminha para um mundo de paz e
fraternidade mas os homens não nos deixam viver assim. Neste momento da
história parece mesmo que estamos a viver um período de regressão. O sonho da
expansão da democracia e da confiança mútua foi quebrado pelo pavor do terrorismo.
Entrámos outra vez num destino de insegurança mas acho que não devemos
desanimar: temos de admitir um recuo numa utopia que nos parece um projecto
razoável mas, como disse, estamos numa regressão perante a ideia de “paz
perpétua” que sentimos no fundo de nós. Talvez a paz não seja só a inexistência
da guerra ou talvez a guerra não seja só o afrontamento de dois exércitos que
espalham a destruição e a morte. É que a guerra começa nos comportamentos de
cada um: na maneira como tratarmos os que estão ao pé de nós – maridos,
mulheres, filhos, pais, empregados, patrões, em resumo, o nosso próximo. “António Alçada Baptista, Crónica
publicada na Revista Máxima
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