Maneiras
IV
“(Tive uma alucinação: vi abertamente no espaço uma mão clara e imóvel. Um
meu amigo assistiu ao intempestivo voo da sua própria mão direita através de
uma praia, por sobre uma multidão de portugueses que devorava coisas. Além
disso, escrevi duas páginas sobre as mãos de um assassino, que cumpriram a
extrema tarefa de estrangular uma criança.)
«Mes mots sont des crimes» — disse o jovem suicida Jean-Pierre Duprey.
Mes mains sont des crimes — digo eu.
Mes mains et mes sculptures sont des crimes — diria o escultor.
Então, era assim o atelier: um espaço intenso e agressivo. Era o espaço do
crime, O lugar onde as mãos haviam caminhado até ao seu limite. Tinham assumido
um crime redentor.
Vejo a paisagem com seus eucaliptos de folhas em quarto lunar, as neves
extraordinariamente sem pistas, grandiosas pedras polidas, nuvens, areias,
salinas e águas. E o Sá-Carneiro diz: «A natureza que é para o artista? Coisa
alguma.» Meu Deus, é preciso então subverter tudo. Aqui está o crime. O homem é
o crime. Esta maravilha de encostar a paisagem ao muro e despejar-lhe em cima
uma boa metralha. É o nosso crime — o do homem.
Eis as mãos do escultor, por este atelier fora, fazendo atentamente o seu
crime. Violentas florações de ferro, cadáveres modernos onde uma nova vida
subtil parte de um coração monstruoso, fixações de uma corrente
electromagnética que atravessa a noite de Domingo (Dia do Senhor) para a manhã
de segunda-feira (que é na realidade o primeiro dia, aquele em que rebenta a
luz). O nosso terror atingiu a claridade que lhe é própria. Ficou um campo de
grandes lâminas de ferro, couraças, pulmões, falos — toda uma simbologia do
entusiasmo nocturno, da inteligente e terrífica onda que de repente nos
conduziu até à madrugada. Que bom não ter de dar pelo nome de crítico — mas possuir
só, para esgotar, um momento crítico, uma vida inteira extremamente crítica.
Passo pelo meio das esculturas, agora sem o escultor, e nada há que eu não
saiba.
Sei de uma tremenda morte no lado esquerdo da escultura a ser, e a ressurreição
nesse deserto amoniacal. Porque habita aqui a árvore da vida, a árvore
petrificada que deu folhas e flor de dentro do sono. Deambulo por esta nação
seca e vejo o objectuário selvagem; as falésias, colinas, baías e promontórios
internos; e o silêncio de uma vegetação abstracta; o terrível paraíso da
imobilidade. De súbito, uma ave de rapina arrebata o animal inocente, e o céu
foge por esse instante fora. Céu de ferro trabalhado por pequenas estrelas
corrosivas.
Afinal temos a nossa voluptuosidade negra, os nossos espelhos, o círculo
vertiginoso dos corpos e a pormenorizada obsessão do nosso conhecimento. O
desejo tem as suas formas, os espelhos replicam às nossas formas, as nossas
formas possuem as suas próprias formas, o conhecimento encontra as suas formas.
Tendemos a formar-nos, a formar o mundo, a reformar o mundo, dentro e fora. O
mundo é a nossa forma de estar no mundo, e fomos nós quem inventou essa forma.
Chamemos-lhe escultura. As mãos são doces e rebarbativos instrumentos e, num
sentido mais próximo da sua dinâmica natural, são o acto de formar
concretamente o espírito na matéria do tempo.
E agora cá temos o escultor, surgindo do fundo dos bastidores, onde não há
sinal de estrelas. Vem das suas trevas. Quando é suficientemente apanhado pelas
luzes, diz: Nada na manga. E, se conseguimos regular pelo seu o nosso ritmo de
inspiração e expiração, descobrimos a pequena maravilha de que ele, na verdade,
nada esconde na manga.
Levanto-me então da plateia e, por entre as metralhadoras esculpidas, conto de
novo a parábola da agulha, que me obceca. Desentranhei-a de um velho manual.
Trata-se de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda
de sua casa. Acorre então o jovem que pretende ajudá-la, e pergunta: Que
procura? — Uma agulha. Caiu-me na cozinha. Logo o inexperiente jovem se espanta
muito e quer saber porque a procura ela na varanda. — Porque na cozinha está
escuro — responde a mulher.
A parábola ajudará a desaprender alguma coisa, e depois será possível aprender
outra coisa.”
Herberto Helder, in " Retrato em movimento (1961-1968), Poesia toda 2 ", Plátano Editora, 1973
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